O Filósofo italiano Giorgio Agamben insiste que, ao contrário do que se costuma supor, o sentido da palavra religião não vem de religar o humano ao divino, mas de separar as duas instâncias. A origem do termo estaria no verbo “relegere” (reler), que indica uma atitude de observação e respeito, de atenção e escrúpulo em relação aos rituais e às coisas sagradas: “Não existe religião sem separação”.
Agamben faz o elogio da profanação num livro publicado este ano na Itália e na França: “Profanazioni” (ed. Nottetempo). Profanar é liberar das normas sagradas o que por elas é mantido separado, restrito, intocável. Significa neutralizar a aura, negligenciar essas normas de modo a atribuir um novo uso (humano) ao que se mantinha interdito ao uso. O exemplo mais contundente é o jogo: “A maior parte dos jogos que conhecemos deriva de antigas cerimônias sagradas, de rituais e práticas divinatórias que pertenciam em outros tempos à esfera religiosa em sentido amplo”.
Na verdade, o jogo não abole a esfera do sagrado, mas permite à humanidade se liberar e desviar dela. A dimensão lúdica faz com que comportamentos e objetos que antes tinham uma finalidade já sacralizada passem a existir apenas para o jogo, para um uso diferente daquele que lhes era consagrado. Como uma criança que brinca com um documento legal sem saber do que se trata. O meio passa a ser o próprio fim, um uso sem utilidade.
No capitalismo, entretanto, que é a religião da modernidade, segundo Walter Benjamin, esse profanador do jogo teria sido esvaziado. O processo teria se invertido. O homem moderno e secular procuraria no jogo justamente o sagrado e o ritual perdido.
Seguindo o raciocínio de Benjamin, Agamben mostra que o capitalismo dissemina por toda parte a separação que define a religião. É uma sociedade secular que faz a consagração do profano. Torna o profano inatingível, intocável, improfanável. Tudo é transformado em fetiche. É a esfera do consumo, da exibição e do espetáculo. O capitalismo se apropria do comportamento profanador, lúdico, para anulá-lo e transformá-lo em fetiche de si mesmo. A pornografia é um bom exemplo: a neutralização de uma intenção, em princípio profanadora dos comportamentos eróticos, reduzida ao consumo solitário de uma imagem inatingível (sagrada). “A profanação do improfanável é a tarefa política da geração por vir”, exorta Agamben.
Há duas semanas, numa cidade de província da França, psicologicamente exausto depois de mais um dia numa dessas feiras de literatura em que se reúnem centenas de escritores do mundo inteiro, tentando vender seus livros, eu voltei ao quarto de hotel de madrugada e liguei a televisão na esperança de assistir a alguma coisa que me tirasse dali o mais rápido possível. Para escritores que não são exatamente populares, esses festivais servem antes de mais nada para dar a dimensão exata da rejeição do público. Mas, em compensação têm pelos menos uma utilidade: à força de se falar de tudo menos de literatura, sempre em nome da literatura, fazem sentir saudades dela.
Trocando de canais ao acaso, entre as séries e os programas previsíveis, fui surpreendido pela imagem de uma nudez incongruente . Logo depois de passar por uma emissora que exibia um filme pornográfico típico, desses que podiam muito bem ilustrar o texto de Agamben, deparei-me com uma cena que já era estranha por si só e ficava ainda mais num canal como a Arte, dedicado às manifestações culturais e aos documentários: vários homens nus, comuns, de meia-idade, velhos, gordos ou esqueléticos, muitos deles repugnantes, vagavam, se esfregavam e se ensaboavam, em meio ao vapor e a bacias de água, por salas caindo aos pedaços, com paredes cobertas de azulejos tão amarelados e usados quanto os próprios corpos.
Era um labirinto povoado eventualmente por corpos que passavam e faziam a sua higiene pessoal, indiferentes uns aos outros e à câmera, na mais completa intimidade, sozinhos ou em duplas, uns esfregando os outros, às vezes pais e filhos pequenos, velhos com poucos anos de vida pela frente etc., sem nunca dizerem nada uns aos outros. Ao contrário dos corpos assépticos do filme pornográfico do outro canal, estes permaneciam demasiado humanos, por mais que se esfregassem.
Para completar o aspecto inesperado das imagens, não faltava lugar para um desejo embutido no que parecia repugnante. Era difícil trocar de canal. A certa altura, uma seqüência de corpos jovens e musculosos, caminhando em círculos, como uma coreografia, introduzia um contraponto à decrepitude geral, remetendo a um momento anterior na vida desses corpos usados. O cuidado e a preocupação de todos consigo mesmos revelava uma dimensão misteriosa do desejo, em que saltava aos olhos a consciência silenciosa da própria finitude.
Só alguns dias depois, fui descobrir, numa revista, que o filme se chamava “Les Bains” (os banhos) e que seu diretor, o francês David Teboul, o tinha rodado em alguma parte da Rússia, com gente anônima. O artigo atribuía ao filme o “caráter sagrado de uma cerimônia pagã”. Achei graça. Pensei no elogio que Agamben faz da profanação. Em “Les Bains”, o desejo está fora do lugar. É um desejo ao mesmo tempo reflexivo e enigmático, porque encontrou um novo uso para os comportamentos eróticos, restituindo a “capacidade humana de profaná-los, desligando-os da sua finalidade imediata”.
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