20 março 2008

Militância e Ativismo

O texto abaixo foi extraído de www.devir.wordpress.com, sem a permissão expressa do autor. Achei relevante, reproduzo aqui. Problemas, email-me que eu retiro.
Os negritos são meus, já que há convergência de pensamentos (meu e do autor) sobre a participação de grupos "partidarizados" e "representativos" na militância. Precisamos de novos representantes, sem homofobia internalizada (a declaração de Mott sobre a aparição das bichas velhas na novela deveria servir de parâmetro para qualquer ação judicial sobre preconceito!!). Alguns atores, depois de sua participação no espetáculo, insistem em um momento além do que lhe coube. É preciso perceber a deixa e abrir espaço para o próximo companheiro que tem o que dizer.

MILITÂNCIA E ATIVISMO - A problemática homossexual em Foucault, Deleuze e Veyne

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo estabelecer uma série de desconstruções acerca da assim chamada “militância gay”, navegando pelos cenários de outras problemáticas homossexuais, a partir da análise de reportagens correlatas à luz dos olhares de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Paul Veyne.

Consideramos, dadas as claras interseções entre estes pensadores, mais frutífero elaborar um texto cujas letras navegam de um pensador para o outro, ao invés de estabelecer uma divisão dos olhares.

Serão consideradas duas notícias específicas: uma sobre um crime de homofobia e outra sobre a ação de organizações gay-militantes. A primeira reportagem, sobre homofobia de fato, serve como contraste para a segunda, onde a mesma acusação criminosa é levantada por grupos militantes, a partir de atos totalmente diferentes. Consideramos necessária a apresentação das duas reportagens, ao invés de apenas uma, justamente pela implicação do contraste que uma causa na outra, e é através deste contraste que nossas considerações encontrarão mais nitidez diante dos três olhares evocados.

ANEXO - REPORTAGENS



REPORTAGEM 1: CRIME DE HOMOFOBIA

Reportagem retirada do site www.uol.mixbrasil.com.br, datada de 23 de março de 2007.

“Tudo indica que pelo menos um dos agressores de Alessandro Araújo está em prisão provisória.

Nesse dia 23 de março, o Mix foi chamado a uma coletiva com a delegada Margarette Barreto, no DECRADI – Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância. O chamado foi uma espécie de prestação de contas da polícia com a comunidade GLBT, que está irritada com os ataques que ocorrem cada vez mais e ficam cada vez mais violentos.
Segundo a delegada, um amigo da vítima Alessandro Araújo, professor universitário que foi brutalmente espancado, reconheceu através de fotos de um banco de dados de suspeitos, um dos agressores. Através desse agressor, que tudo indica ser o líder da gangue auto-intitulada Devastação Punk, a polícia foi levada a mais quatro pessoas, todos maiores de idade, entre eles uma mulher de 26 anos. Vale lembrar que dentre os agressores de Alessandro, havia duas mulheres.”



REPORTAGEM 2: ENXURRADA DE DENÚNCIAS

Reportagem retirada do site www.uol.mixbrasil.com.br, datada de 29 de julho de 2005.

“Quem acompanha o movimento GLBT no Brasil percebe que há uma série de processos ou ameaças de entrar na Justiça contra os mais diversos agentes sociais. De Maurício de Souza a Hebe Camargo, passando pelas novelas “A Lua Me Disse” e “América”, por supostas agressões à comunidade GLBT.

É o caso do autor de novelas Miguel Falabella, que em “A Lua me disse” incluiu dois personagens caricatos. Luiz Mott, do Grupo Gay da Bahia, conta que morreu de vergonha quando a família de seu namorado assistia à novela e “apareceram as bichas velhas, desmunhecando, fazendo tiranias e baixarias”. “Essa é a imagem que o povo tem da gente, e lutamos para que nos vejam como somos, homens que gostam de homens e não malucas desvairadas caricatas”. Acusado de “fundamentalista”, por querer processar o autor de televisão, Mott responde perguntando: “Defender nossa dignidade é fundamentalismo GLBT?”

(…) A fofíssima Hebe Camargo também está sendo alvo de grupos que querem processá-la porque, em um programa do SBT, ela disse que todo bissexual é mentiroso. A declaração foi contextualizada em uma discussão na qual questionava-se se seria possível desejar, indistintamente, homens e mulheres. Essa dúvida está presente também entre vários membros da comunidade GLBT, mas os militantes afirmam que uma pessoa pública como Hebe Camargo tem de vigiar o que diz.”



PODERIO MASCULINO E DISCURSOS NORMATIVOS: ONDE ESTÁ A TOLERÂNCIA?

A partir das perspectivas assimiladas ao longo da obra foucaultiana, podemos dizer que ninguém “nasce” homem, mas sim que todos nos tornamos homens, numa busca constante. A dita virilidade masculina representa o investimento numa rede relacional: busca-se o reconhecimento da masculinidade. Esta virilidade é uma ética, uma constante inquietude de si. Ao contrário do que pregam alguns militantes gays, o sexo não nasce feito, e por isso mesmo é que temos que fazê-lo. Nem mesmo “nasce-se gay”, na medida em que a identidade homossexual, como toda e qualquer identidade humana, demanda contínua construção, desconstrução, reconstrução. Dizer que “fazemos sexo” é mais do que um simples jogo de palavras: enquanto um se faz homem, o outro se faz mulher ou, melhor dizendo, o sujeito se faz homem fazendo do outro uma mulher, tornando-se “outro do outro”. É importante salientar que, se o sexo é definido como uma divisão entre gêneros, todo sexo e toda sexualidade é heterossexual, no sentido de que “hetero” significa “diferente”, ou seja, todo relacionamento sexual entabulado com um ser diferente de mim, seja ele um homem ou uma mulher, será hetero, pois o sujeito se faz homem na medida em que faz do outro uma “mulher”. Essa divisão, existente no imaginário masculino, está longe de ser igualitária, ao contrário, é hierarquizada. Através do ato sexual, os sujeitos são inscritos numa hierarquia determinada, territórios são demarcados, corpos e sujeitos são heterossexualizados: eu sou o homem, você é a mulher. A partir das descrições históricas de Veyne, ao relatar os hábitos sexuais dos antigos gregos, podemos afirmar que até mesmo as ditas relações “homo” da antiguidade estão longe de serem relações entre iguais. Elas são heterossexuais, na medida em que o homem mais velho, o erastes, exercia sobre o efebo impúbere, ou eromenos, um poder, e uma hierarquia era estabelecida. Uma relação “homo”, na antiguidade ou na modernidade, envolveria dois sujeitos que fossem considerados iguais (sejam eles machos ou fêmeas), sem hierarquias de subjugador e subjugado. Seria isso possível, ou mesmo real, no chamado “mundo gay”? Para responder a esta pergunta, julgamos necessário antes navegar em outros oceanos reflexivos.

A busca do falo decorre justamente do medo de ser o outro, de ser feminino, de ser chamado de “mulherzinha”, de “bicha”. Para não se colocar no “lugar da mulher”, o homem precisa fazer dos outros mulheres. Isto é profundamente irônico, pois, a princípio, em teoria ser gay deveria ser uma maneira de fugir da heteronormatividade, mas não é isso o que vemos na prática. Os ditos “meios gays”, sejam eles físicos (boates) ou virtuais (sites gays ou salas de bate-papo), se constroem como um campo onde ainda se tenta afirmar uma hipermasculinidade. Sobretudo em meios virtuais, uma linguagem específica, supermasculina, é evocada, numa espécie de luta agonizante de “vamos ver quem é mais homem”. Antes de uma tentativa de desconstruir a hipermasculinidade e lutar contra ela, já que é ela que causa a homofobia e a misoginia, as pessoas que mantêm envolvimentos homoeróticos, pelo menos a maioria delas, para serem “aceitas”, têm tentado se encaixar na moral da hipermasculinidade.

Ao que parece, o discurso heteronormativo, esta assim chamada “matriz hegemônica de inteligibilidade”, tem o poder de penetrar até mesmo o universo gay, atravessando todas as relações e adequando tudo o que encontra a uma lógica hegemônica. A mesma misoginia que cria o discurso homofóbico sobrevive nessa divisão tão solidamente estruturada por discursos culturais dentro dos guetos gays, criando até nos relacionamentos mais íntimos barreiras identitárias poderosíssimas. A intolerância, pretensamente apontada pelos militantes gays no que eles chamam de “totalitarismo heteronormativo”, parece ser uma pálida sombra se comparada à intolerância que subjaz aos próprios grupos militantes sob os mais diversos aspectos que serão expostos ao longo deste trabalho, a partir de algumas perguntas-chave: existe, de fato, um exemplo de tolerância? Houve tal exemplo em algum momento da história humana que poderia ser seguido como um modelo? E o que Foucault, Deleuze e Veyne pensam a respeito de seguir modelos históricos passados, conforme propõem alguns militantes?

O RETORNO AOS GREGOS

É assaz comum, no que concerne aos argumentos dos militantes gays acerca da homossexualidade, referir-se (ingenuamente) à antiga Grécia como um exemplo espetacular de civilização tolerante para com a prática homoerótica, considerando a civilização judaico-cristã como “atrasada” em relação à realidade homossexual. A partir desta comparação histórica, evoca-se a idéia de um relativismo moral e questionam-se as bases do preconceito moderno. Todavia, os militantes parecem convenientemente esquecer (ou talvez ignorem de fato) que, no que tange à antiga Grécia, temos interdições tão claras quanto as interdições atuais, muito embora sejam interdições diferentes. Conforme discorre Foucault ao longo da sua obra, não é interessante tomarmos outra época como um modelo, pois não há um valor exemplar em um período que não seja o nosso próprio. Deleuze valida esta afirmação, ao sustentar em sua obra Conversações, nas páginas 141-142, que Foucault detestava retornos: falamos do que vivemos. A história não diz o que somos, não estabelece a nossa identidade, diz apenas aquilo que estamos em vias de diferir. Paul Veyne emite um pensamento similar em O Último Foucault e sua Moral, ao dizer que o que se opõe ao tempo, assim como à eternidade, é a nossa atualidade. Fazer uma “arqueologia gay” não é necessariamente voltar-se para o passado. Deleuze aponta em Conversações (p.120) para uma arqueologia do presente, em que tomamos as coisas para extrair delas as suas visibilidades. Não se trata, em absoluto, de procurar um modelo dito ideal que sirva como norma moral para os gays, mas – retomando Nietzsche - descobrir como a operação artística da vontade de potência permite a invenção de novas possibilidades de vida: um “ser gay” que se constrói, se inventa, um “ser” enquanto verbo atuante em nosso tempo, jamais como substantivo-modelo de uma época passada.

Deste modo, respondemos desde já a pergunta explicitada nos parágrafos anteriores: não, segundo Foucault, Deleuze e Veyne, não se trata de seguir um modelo, muito menos um modelo grego antigo, mas de criar um modo de vida gay que admita a pluralidade, um modo que se recrie continuamente, de forma integra e autocrítica, buscando maneiras de sabotar qualquer espécie de normatividade. Vale ressaltar que Foucault jamais apresenta uma resposta, uma solução, nem aponta um caminho que possa ser considerado como “certo” para as problemáticas gays. Esta resposta cada um deve encontrar por si mesmo, num ativismo pessoal numa militância do sujeito. Até mesmo porque, de acordo com o olhar foucaultiano, não existe escolha certa, e sim uma escolha entre perigos, onde devemos buscar dos males o menor. Sim, Foucault é pessimista em sua visão, mas jamais apático. Seu pessimismo deriva da consciência de que toda escolha é perigosa, e acarreta em efeitos colaterais inevitáveis. Não existe “caminho melhor” e “caminho pior”, para Foucault, e sim caminhos com problemas diferentes, com perigos diferentes, em que o perigo principal deve ser identificado.


HOMOFOBIA: UMA PALAVRA DE PODER

Chama-nos também a atenção a apropriação, por parte das militâncias gays, de termos que são usados com o evidente intuito de exercer poder, de subjugar. “Homofobia” é um bom exemplo moderno. Este termo foi introduzido pelo psiquiatra George Weinberg, no livro “Society and the Healthy Homosexual” (New York, St, Martin’s Press, 1972) para designar o complexo emocional que, no seu entender, seria a causa da violência criminosa contra homossexuais. Observamos, contudo, uma apropriação deste termo pelas militâncias gays, que passaram a acusar de “homofobia” uma série de fatos, atos e discursos de uma maneira exagerada que nos faz pensar: não seria, na verdade, uma forma de demonstrar poder? Uma forma clara de tentar intimidar todos aqueles que pensam diferente destes militantes? À luz do que estudamos sobre relações de poder em Foucault e Deleuze, ousamos dizer que sim.

No livro “A History of Homophobia“, o ensaísta Rictor Norton, um apologista da homossexualidade, é bem franco sob esse aspecto: “Com muita freqüência, a palavra ‘homofobia’ é apenas uma metáfora política usada para punir.”. Sob este ponto de vista, o exagero é evidenciado quando os militantes acusam de “homofobia” toda e qualquer pessoa que não pregue a cartilha da militância e repita, tal qual foi determinado pelo alto comando das ONGs e instituições, o que pode e o que não pode ser expresso como opinião a respeito da vida homossexual.

Usar o mesmo termo (“homofobia”) para definir um skinhead espancador de homossexuais e uma pessoa que diz ser contra o casamento gay por motivos religiosos parece ser uma forma injusta de nivelamento, e mais que isso: uma tentativa explícita de censurar a opinião das pessoas. Quando Hebe Camargo é chamada de “homofóbica” por duvidar da existência de bissexuais, conforme evidenciado na segunda reportagem que norteia este trabalho, cria-se um valor de equivalência entre o ato da apresentadora e o ato dos criminosos que espancaram o professor universitário homossexual Alessandro Araújo (notícia evidenciada na primeira reportagem). E mais: quando se acusa de “homofobia” cada objeção à lei “anti-homofóbica”, é claro e transparente que a divergência em si já está criminalizada, antes mesmo que a proposta se consagre em lei. Isso é totalitarismo no sentido mais literal do termo. De onde nos permitimos pensar: a militância gay luta efetivamente pelos direitos dos homossexuais, ou não passa de uma forma de exercer poder e ditar regras? Não seria a militância gay apenas mais uma fórmula ideológica e projeto de poder? Para Veyne, por exemplo, segundo Yolanda Gloria Gamboa Muñoz em Escolher a Montanha (p.41) a ideologia é um estilo nobre, porém vago, que idealiza as práticas, dissimulando os contornos das práticas reais: o que se faz e o que se diz. Conforme cita Muñoz a respeito de Veyne: “Por isso, em certo momento, ele poderá afirmar que ‘a ideologia não existe’” (Escolher a Montanha, pg.41, 2005)


UNIFORMIZAÇÃO GAY: E A TAL DIVERSIDADE?

Não obstante as declaradas intenções libertadoras da militância gay, um olhar mais apurado não deixa escapar uma ideologia normatizadora que norteia tal militância. Luiz Mott, do Grupo Gay da Bahia, diz, conforme explicita a segunda reportagem:

“(…) que morreu de vergonha quando a família de seu namorado assistia à novela e “apareceram as bichas velhas, desmunhecando, fazendo tiranias e baixarias”. “Essa é a imagem que o povo tem da gente, e lutamos para que nos vejam como somos, homens que gostam de homens e não malucas desvairadas caricatas”. Acusado de “fundamentalista”, por querer processar o autor de televisão, Mott responde perguntando: “Defender nossa dignidade é fundamentalismo GLBT?”

Este discurso deixa claro, de forma deveras impressionante, que a fala militante neste caso prevê regras de conduta, modelos de comportamento e normatizações para o “ser homossexual” (“ser” enquanto verbo e não substantivo, vale salientar). Fica evidente, na fala de Mott, que um sujeito pode ser homossexual, contanto que não seja uma “maluca desvairada e caricata” (leia-se: afeminado) e, ao que parece, ser “velho” é também um demérito, e não uma condição natural e inevitável da biologia. Tal discurso não dá espaço para a invenção da homossexualidade a partir de um ativismo constante e auto-questionador, conforme nos propõe Foucault. Existe, para Mott, uma forma ideal de ser homossexual, uma forma que, justamente por ser idealizada, exclui terminantemente uma realidade: efetivamente, existem homens homossexuais afeminados, quer goste disso ou não Luiz Mott. É importante salientar que a vergonha que Mott diz sentir está atrelada ao olhar dos heterossexuais sobre a cena: ele não sente vergonha por ver a cena, ele sente vergonha quando a família (heterossexual) a assiste, ou seja, ainda necessita da aprovação do status quo heterossexual do qual ele diz ser liberto. “Lutar para que nos vejam como somos” só faz sentido se esta luta incluir, conforme salienta Foucault, a diversidade, e também a liberdade criativa para que nos inventemos continuamente, criando novas formas de relações e de “ser”. Qualquer tentativa de uniformização não passa de trocar um modelo de regras por outro: no caso, troca-se o modelo normativo heterossexual por um modelo normativo homossexual completamente infectado pela misoginia e pelo machismo. E o que significaria “nos ver como somos?”, afinal de contas a pluralidade prevê incontáveis “jeitos de ser”, alguns inclusive que nem foram inventados ainda. O discurso militante subentende que existe um “como somos” universalmente válido para os gays do norte, do sul, do leste e do oeste.

Em sua entrevista intitulada “De l’amitié comme mode de vie”, concedida a R. de Ceccaty, J. Danet e J. le Bitoux para o jornal “Gai Pied” em abril de 1981, Foucault chama a atenção para o problema da construção da identidade homossexual. O problema, segundo Foucault, não reside no questionamento “quem sou eu?” (autoconhecimento), e sim na seguinte questão: quais relações podem ser estabelecidas, inventadas, multiplicadas, moduladas através da homossexualidade? Foucault, aqui, enfatiza a importância do “cuidar de si” sobre o mero “autoconhecimento”. Que se destaque aqui a importância do termo “invenção”, ponto chave para o entendimento do pensamento foucaultiano. A prioridade não está numa descoberta de “quem sou”, e sim uma responsabilidade ética de se inventar, se reinventar, como num devir-gay. A vida como uma obra de arte.

Deleuze, no que diz respeito à concepção da vida como uma obra de arte, salienta que a constituição dos estilos de vida (podemos aqui nos referir aos estilos de vida gay) não é somente estética, é também uma ética, por oposição à moral. Deleuze detalha esta diferença em sua entrevista a Didier Eribon:

“(…) A diferença é esta: a moral se apresenta como um conjunto de regras coercitivas de um tipo especial, que consiste em julgar ações e intenções referindo-as a valores transcendentes (é certo, é errado…); a ética é um conjunto de regras facultativas que avaliam o que fazemos, o que dizemos, em função dos modos de existência que isso implica.” (Deleuze, “A Vida como Obra de Arte”, entrevista concedida ao jornal Le Nouvel Observateur, em agosto de 1986)

A partir desta diferenciação entre ética e moral, não nos passa despercebido, diante da ação e idéias dos gays, que eles – tanto quanto qualquer heterossexual - parecem estabelecer uma moral, um manual de regras de como os gays devem ser e se portar, de que é certo ser um gay deste modo, mas é errado ser de outro modo (ser afeminado; ser espalhafatoso). Isso fica evidente nos preconceitos existentes dentro dos próprios guetos, e na repulsa a manifestações estéticas femininas dentro dos meios e paradas gays hipermasculinizadas. O discurso militante enfatiza continuamente “que os gays devem ser vistos como pessoas de respeito”. Mas o que isso significa? Qual é a “vontade” de verdade suposta por um discurso que se impõe como “verdadeiro” e que esse discurso só pode ocultar?

Podemos ir além: não seriam os guetos gays verdadeiros internatos, meios de confinamento? Os próprios homossexuais parecem “se internar”, na medida em que consideram, para usar um termo coloquial, “uma queimação de filme” a demonstração de afeto homoerótico fora de lugares que não sejam considerados “apropriados”.

O DESPREZO AOS PASSIVOS E A NORMATIZAÇÃO HOMOSSEXUAL

É curioso observar que as críticas de Luiz Mott acerca da afeminação de gays mostrados na TV não é muito diferente das críticas que um homem afeminado sofreria na antiga Grécia. Mott não está só em sua rejeição aos afeminados: é extremamente comum, nos tempos modernos, a afirmação “eu sou gay, mas não sou afeminado e detesto afeminados”. Além disso, saliente-se o fato de que o termo pejorativo “bicha passiva” é amplamente utilizado pelos próprios homossexuais para se referir a outros com sinal de evidente desprezo. Nada disso é muito novo, e quem enxerga a antiga Grécia como um paraíso da diversidade gay, se equivoca profundamente. De acordo com Veyne, em sua obra “A Homossexualidade em Roma”, um homófilo passivo (diatithemenos) era alvo de desprezo e de rejeição, sobretudo por parte do exército. Veyne conta que certa feita um homossexual passivo foi poupado de ser decapitado, porque o imperador não queria que a lâmina do gládio do carrasco fosse conspurcada por tão aviltante criatura. A afeminação masculina era vista pelos antigos greco-romanos como algo desprezível. De modo análogo, muito embora por razões diferentes, os homossexuais modernos parecem sofrer da mesma aversão à passividade sexual masculina. Fica evidente que existe um modelo normativo entre os próprios homossexuais, modelo que se pauta em regras e em “modos de ser” que, longe de criar sujeitos criativos, cria aquilo que Foucault chama de “clones”, ao se referir aos homens de aparência similar nas paradas gays (na época de Foucault, homens com fartos bigodes e óculos Ray-ban; modernamente, homens anabolizados e preferencialmente depilados). Na entrevista “A Amizade como Modo de Vida” concedida ao jornal Gai Pied em abril de 1981, p.39, Foucault usa o termo “clones bigodudos”, para se referir a estes homens “todos iguais”. Estes “clones”, ao contrário de criarem a obra de arte de suas próprias existências, compraram o modelo pré-existente, pré-fabricado, uma identidade de plástico.

O direito à repulsa, ao asco, portanto, é pleiteado como monopólio exclusivo pela militância gay. Se um heterossexual diz ter nojo das relações homossexuais, será prontamente atacado por instituições gay-militantes, será chamado à atenção ou mesmo processado por suposta homofobia. Mas Mott, conforme demonstra a reportagem, não se furta a demonstrar seu asco contra o que ele chama de “bichas velhas que desmunhecam”.

Os movimentos de militância gay demonstraram por vezes diversas uma inclinação totalitária. Ao invés de proteger os homossexuais, lutando pelos justos direitos civis, tais movimentos parecem mais empenhados e ocupados em destruir radicalmente tudo o que, na sociedade, na cultura ou em sujeitos particulares, explicite discordância. A ideologia torna-se uma arma policial delirante que tenta proibir toda divergência de opinião, toda repulsa espontânea, todo pensamento que a desagrade e até mesmo as piadas, que fazem sentido dentro do contexto de uma comédia, peça ou novela. Ao eliminar toda diferença, o que sobra? Uma montanha intransponível de concordância e subserviência à cartilha politicamente correta (e politicamente tirânica, diga-se de passagem). As próprias atitudes públicas dos ditos “representantes dos gays” evidenciam isso. Tais representantes, munidos da mais intensa disposição de perseguir qualquer opinião que contrarie a deles, dizem falar em nome dos gays, mas o que isso significa? Não podemos nos furtar a citar o que Deleuze, em Conversações (p.110) chama de “indignidade de falar pelos outros”. Transportando esta fala para o presente assunto, ousamos perguntar: como alguém que critica homens afeminados, como Luiz Mott o faz, pode se dizer porta-voz de todos os gays? Definitivamente, não. Mott, no máximo, fala em nome de um tipo específico de gay – especificamente aquele que não fere as suscetibilidades dos heterossexuais, comportando-se de um modo domesticado, padronizado, que permita que os gays sejam vistos “como pessoas de respeito” – uma priorização à moral, mas não uma ética. A dignidade de não falar pelos outros deveria ser parte do intelectual, para Deleuze, que denuncia em Conversações (p.110): sempre que alguém diz “ninguém pode negar”, “todo mundo há de reconhecer que”, eis uma mentira ou um slogan. A proposta deleuziana-foucaultiana é a de que cada um fale em seu próprio nome. Não devemos falar em termos de valores universais, mas em nome de nossa própria competência e situação.Se o grupo não é multivocal, onde está a ética? Guatarri, com quem Deleuze trabalhou por diversas vezes, enfatizaria a idéia de “transversalidade”, por oposição aos grupos hierarquizados onde temos um que fala em nome de todos os outros.

MILITÂNCIA GAY VERSUS MILITÂNCIA DA DIVERSIDADE

Uma cultura homossexual, para Foucault, deveria possibilitar instrumentos para a polimorfia, a variabilidade, a diversidade, evitando uniformizações e estabelecimento de regras de conduta. A simples idéia de “programas” e “proposições” estabelecidas por uma autoridade institucional, ainda que gay, feita para gays, é um perigo, pois na medida em que um programa se apresenta, ele estabelece uma lei, um mandamento, e isso bloqueia o fluxo da livre invenção. Neste sentido, Foucault é categórico ao afirmar que qualquer programa deve ser vazio (Da Amizade Como Modo de Vida, jornal Gai Pied, p.38-39). Na medida em que cavamos a história, descobrimos como as coisas foram historicamente contingentes, mas não necessárias. Qualquer coisa que seja estabelecida como uma necessidade homossexual deve ser peremptoriamente negada, pois o que existe (ou o que já existiu) está longe, muito longe de preencher todos os espaços possíveis.

O corpo da multidão gay aparece no centro do que poderíamos chamar, retomando uma expressão de Gilles Deleuze, de um trabalho de “desterritorialização” da heterossexualidade. Uma desterritorialização que afeta não apenas o espaço urbano, como também o espaço corporal. Este processo de “desterritorialização” do corpo implica uma resistência ao processo de chegar a ser “normal”. O fato de que haja tecnologias precisas de produção de corpos “normais” ou de normalização dos gêneros não acarreta um determinismo ou um fracasso da possibilidade de uma ação política. Uma vez que os gays trazem consigo como resíduo a história das tecnologias de normalização dos corpos, eles também detêm a possibilidade de intervir nos dispositivos biotecnológicos de produção de subjetividade sexual.

Identificações de teor pejorativo como “sapatonas” ou “bichas” se converteram em lugares de produção de identidades de imensa importância, que resistem à normatização, que desafiam o poder totalitário, das chamadas constantes à “universalização do modo de ser gay”, quer os gays normatizados gostem disso ou não.

Influenciadas pela crítica do período pós-colonial, as teorias gays dos anos 90 têm utilizado os enormes recursos políticos das identificações de “gueto”, identificações que iriam ter um novo valor político, dado que pela primeira vez os sujeitos do enunciado eram as próprias “sapatonas”, as “bichas de jeito tresloucado” de quem Mott não gosta, os negros e os transgêneros. Ainda que muitos insistam numa “guetização” normatizadora, os movimentos e as teorias gays respondem com estratégias ao mesmo tempo hiper-identitárias e pós-identitárias. Fazem um uso radical dos recursos políticos da produção performativa das identidades desviadas. Destacamos, por fim, a força de alguns poucos lugares específicos, como a boate “A Lôca” de São Paulo, um espaço com decoração inspirada em deuses e seres mitológicos somados a ícones do universo sadomasoquista. “A Lôca” é referência underground em São Paulo e recebe um público que ilustra a diversidade e o respeito às diferenças identitárias, sem preconceitos: ao lado de homens gays musculosos, dançam travestis, “bichas velhas”, bissexuais, lesbian chics, “sapatonas”, góticos, e até mesmo heterossexuais sem preconceito. Internacionalmente, a força de movimentos específicos como as Radical Fairies, grupo que representa as “bichas loucas” nos EUA, deriva de sua capacidade para se utilizar de suas posições de sujeitos “abomináveis” (esses “maus sujeitos”, segundo os próprios gays normatizados) para fazer disso lugares de resistência ao ponto de vista “universal”, à história branca, colonial e machista do “humano”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LIVROS

VEYNE, Paul. A Homossexualidade em Roma. Trad. de Ana Paula Faria. Editora Terramar, 1998.

MUÑOZ, Yolanda Glória. Escolher a Montanha – Os Curiosos Percursos de Paul Veyne. Associação Editorial Humanitas, 2005.

DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. de Peter Pál Pelbart. Editora 34, 1992.

FOUCAULT, Michel. História da Loucura. Trad. José Teixeira Coelho Neto. Editora Perspectiva, 2007.

WEINBERG, George. Society and the Healthy Homosexual. St. Martin’s Press, New York, 1972.

ARTIGOS

FOUCAULT, Michel. “Da Amizade como Modo de Vida”, jornal Gai Pied, abril de 1981, p.38-39, tradução de Wanderson Flor do Nascimento. Disponível na internet em

VEYNE, Paul. “O Último Foucault e sua Moral”, 1985, p.933-941, tradução de Wanderson Flor do Nascimento. Disponível na internet em

NORTON, Rictor, A History of Homophobia, “1 The Ancient Hebrews”, 15 de Abril de 2002. Disponível na internet em .

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