28 junho 2007
Revista Studium
Coordenada por Fernando de Tacca, um príncipe, a revista Studium está com o número 26 disponível. Imperdível o seu estudo sobre o trabalho de Boris Kossoy!
Confusão
A Universal marcou a estréia do filme "Eu os declaro..." (I now pronounce you Chuck and Larry) para o dia de abertura do Outfest - festival de filmes GLBTXYZ em Los Angeles. No filme, Adam Sandler e Kevin James ( o gordinho gostosinho da série The King of Queens) fingem ser um casal gay, para ter direito aos benefícios que a corporação concede. A guerrinha está aberta, como se não houvesse mercado para todos...Falta água nesta mangueira, para apagar o fogo das vaidades.
27 junho 2007
Música Lésbica e Guei
Música Lésbica e Guei de Philip Brett e Elizabeth Wood
I. Introdução ao original inédito
(o texto trata da briga dos autores com o editor)
II. (Homos)Sexualidade e musicalidade
Conceber as categorias sexuais como arbitrárias ou contingentes à prática histórica ou social ainda é difícil para a maioria das pessoas em face de a sexualidade, como a musicalidade, ter sido tão completamente naturalizada durante o século XX e tão firmemente engastada num sentido individual do eu (Jagose 1996: 17–18). Todavia, embora mantendo a importância para a sociedade moderna das categorias mesmas da heterossexualidade e da homossexualidade e do processo de aculturação que as envolve, pensar historicamente acerca daquele “sentido do eu” tornou-se paradoxalmente o fundamento de boa parte dos trabalhos críticos lésbicos e gueis. Tal modo de pensar avaliza ainda a “teoria queer”, fenômeno intelectual baseado na recuperação do termo pejorativo queer e na regência do conhecimento lésbico e guei pelo conhecimento e as formas de pensar pós-modernos. Seguindo o raciocínio de Foucault, Halperin (1990: 24–25) localiza a dificuldade histórica: “homossexualidade pressupõe sexualidade, e a própria sexualidade [...] é uma invenção moderna” que “representa a apropriação do corpo humano e de suas zonas erógenas por um discurso ideológico”. Antes do começo do século XIX, atos sexuais desviantes como a sodomia — “aquela categoria absolutamente confusa” (Foucault 1978: 101) — não se particularizavam em gênero ou mesmo espécie; e alguns modos antigos de desejo pelo mesmo sexo, como o safismo e a pederastia, podem ser identificados em todo o decurso da cultura ocidental. Ao findar o século, porém, o modelo dominante da heterossexualidade formulou-se nos termos de sua oposição binária a uma identidade homossexual efetiva (embora ainda incoerente). Processo similar de formação de identidade é visível na música, onde o termo musicality substitui musicalness, mais antigo e mais vago, enquanto qualidade inerente atribuída à “natureza”, mas na realidade construída em instituições musicais de vários tipos, notadamente as educacionais, às voltas com o desenvolvimento do talento musical (vide Kingsbury 1988).
A ligação entre musicalidade e homossexualidade e uma forte suposição de que a profissão musical se compusesse sobretudo de homossexuais ingressaram no discurso público como resultado indireto da sexologia, trabalho científico fundamental para o entendimento moderno da sexualidade, iniciando-se na década de 1860 com a pesquisa pioneira de K. F. Ulrichs sobre o uranismo e desenvolvendo-se através de Richard von Krafft-Ebing, Magnus Hirschfeld, Albert Moll e outras autoridades alemãs. Na passagem do século, estudos ingleses em prol duma atitude liberal para com o “invertido” ou “uranista” fazem referência freqüente às fontes alemãs. “Quanto à música, [...] ela é certamente a arte que, em sua sutileza e suavidade — e talvez em certa tendência a permitir-se a emoção —, mais se aproxima da natureza uranista. Há mesmo poucos desta natureza que não tenham algum dom para a música” (Carpenter 1908: 111). Havelock Ellis deu tratamento ainda mais interessante ao tema (“exorbitou-se ao dizer que todos os músicos são invertidos”) e citou Oppenheimer no sentido de que “a disposição para a música é marcada por uma grande instabilidade emocional e esta instabilidade é uma disposição ao nervosismo”, para concluir que “o músico não se tornou nervoso em função da música, antes ele deve seu nervosismo (como também, acrescente-se, sua disposição à homossexualidade) à mesma disposição à qual deve sua aptidão musical” (Ellis 1915: 295).
Tais crenças, quando justapostas aos escândalos públicos em vários países da Europa e sobretudo aos inquéritos contra Oscar Wilde em 1895, culminando numa pena máxima de dois anos de trabalhos forçados pela contravenção de “ato obsceno com outro indivíduo do sexo masculino” (de acordo com a famosa emenda Labouchère ao Criminal Law Amendment Act de 1885), não fizeram senão exacerbar um clima no qual nem a presença de homossexuais na música nem suas contribuições a esta podiam reconhecer-se, um clima no qual a experiência da opressão sexual que determina as vidas de lésbicas e gueis não podia conectar-se à musicalidade. Em virtude destes antecedentes, proscreveu-se qualquer referência à sexualidade proibida e ilegal em suas associações com a música. “Você não mencionou isto”, explicou Virgil Thomson aos noventa e um anos de idade a seu biógrafo, oferecendo como justificativa final um “é claro que todo o mundo sabia do caso Oscar Wilde” (Tommasini 1997: 69). A arte da música, a profissão musical e a musicologia do século XX foram todas moldadas pelo conhecimento e pelo medo da homossexualidade. A necessidade de separar a música da homossexualidade impulsionou a convicção crucial de que a música transcenda a vida comum e seja autônoma em relação aos efeitos e à expressão sociais. Contribuiu ainda para a resistência à investigação crítica sobre a política — especialmente a sexual — da música e questões relacionadas à diversidade sexual, como o gênero, a classe, a etnicidade e a raça, a crença religiosa, e o poder.
Por outro lado, o caráter inespecífico da linguagem musical e a doutrina de sua autonomia em relação às questões sociais levaram a uma situação especial, a música tendo desempenhado — e desempenhando ainda — um papel importante como válvula de escape e como reguladora no mecanismo do “armário”, mais que um símbolo da natureza oculta de muitas vidas de lésbicas e gueis, provavelmente o atributo mais importante da homossexualidade do século XX, mais determinante e universal na cultura do ocidente que os próprios atos sexuais. Nas palavras do autor guei Wayne Koestenbaum (1993: 189–90), “historicamente, definiu-se a música como mistério e miasma, o implícito ao invés do explícito, e, assim, nela nos temos escondido: na música podemos assumir-nos sem nos assumir, revelar sem dizer palavra”. O privilégio de expressar livremente o desejo e outros sentimentos na música, uma tábua de salvação para aqueles cujas emoções básicas são invalidadas, parece ter levado também a uma anuência concomitante e tácita em preservar o status quo. Embora maciçamente povoados de lésbicas e gueis, os vários ramos da música têm tardado em demonstrar qualquer oposição patente à ordem heteronormativa das coisas (Brett in Brett, Wood e Thomas orgs 1994: 16–18). A maioria dos homossexuais interiorizou a opressão. “Oscar Wilde queixou-se na prisão de ter sido desencaminhado pela ‘erotomania’ e por um apetite sexual extravagante; [...] Sir Roger Casement, o patriota irlandês, pensou que sua homossexualidade fosse uma doença terrível da qual devesse curar-se; e Goldsworthy Lowes Dickinson, um humanista liberal famoso pelo racionalismo, encarou a sua como um infortúnio: ‘sou qual um inválido’” (Weeks 1981: 105). Muitos músicos homossexuais combinaram esta interiorização da opressão com alguma forma de protesto, ainda que inarticulada. Os vários mecanismos empregados para este fim são, às vezes, de difícil decifração e a musicologia ainda tem pouca experiência com sua criptografia, mas pode-se argumentar que estejam sempre presentes. A “sublimação conspícua” (Kramer 1995: 203) de Ravel; o alheamento ultramodernista de Maxwell Davies; a auto-supressão de Strayhorn; os códigos ocultos nas óperas e memórias de Smyth, apesar da erótica exultante de sua música de Sufrágio (Wood in Solie org. 1993, Wood 1995); a recusa de Mary Garden ao papel de Oktavian no Cavaleiro da rosa devido a suas implicações lésbicas; o radicalismo social de Blitzstein e Tippett; a excentricidade de Vladimir Horowitz e os desmentidos estridentes de Peggy Glanville-Hicks; o pacifismo de Britten e seu discurso homoerótico disfarçado em tratamento musical da literatura canônica; o camp musical de Poulenc por um lado e sua religiosidade por outro; as alusões para entendedores nas canções de Cole Porter e Noël Coward; a fixação de Landowska no cravo antediluviano como veículo de seu virtuosismo; a fuga de Henze do serialismo e da Alemanha; o cultivo duma voz “safônica” por Kathleen Ferrier e várias outras cantoras (Wood in Brett, Wood e Thomas orgs 1994); a audácia e o desespero de cantoras de blues como Ma Rainey, Bessie Smith e Billie Holiday; a desmistificação por Dent de Beethoven e de outros preceitos estabelecidos; o envolvimento de Szymanowski com o dionisíaco (e seu romance homoerótico em dois volumes, Ephebos); a adesão inicial de Copland ao erotismo (representado pelo orientalismo ou pela “negritude”) e a subseqüente erradicação de elementos corporais ou eróticos em favor dum estilo “puro e absoluto”, conquistado através do que Metzer (1997) chama de “uma campanha composicional da terra arrasada”; a crítica subversiva de Virgil Thomson e sua colaboração com Gertrude Stein; as vozes “andarilhas” de Partch; o disfarce vocal “vaqueiro solitário” realçado por falsete de Elton John e a representação musical do cantor no funeral de Diana, a Pária Real; a dupla adesão de Cage ao ruído e ao silêncio na música; o gamelão de Harrison e sua defesa do esperanto; a sentimentalidade de Menotti; o cultivo da “escuta profunda” comunitária por Pauline Oliveros e seu afeiçoamento ao acordeão; a espetaculosidade exagerada de Bernstein; e até a fachada mandarinesca de Boulez e as faces agressivamente inexpressivas dos Pet Shop Boys: tudo isto — e ainda outros aspectos da arte e da auto-apresentação destes homens e mulheres — pode ser lido como sinais tanto duma acomodação ao fato onipresente do enruste como duma subversão do mesmo. Objetar-se-á que em muitos casos seria possível achar-se um equivalente “hétero”. Mas uma lista como esta, à qual se poderiam acrescentar os nomes de Reynaldo Hahn, Roger Quilter, John Ireland, Charles T. Griffes, Eugene Goosens, Cole Porter, Dimitri Mitropoulos, Henry Cowell, Noël Coward, Colin McPhee, Wolfgang Fortner, Samuel Barber, Paul Bowles, David Diamond, Ben Weber, Daniel Pinkham, Karel Goeyvaerts, Jean Barraqué, Stephen Sondheim, Sylvano Bussotti, Conrad Susa, David del Tredici, John Corigliano, Charles Wuorinen, Konrad Boehmer, Thomas Pasatieri e muitos outros, não apenas mostra quão considerável tem sido a presença homossexual na música ocidental do século XX, mas induz também às questões de como e por que, na era pós-freudiana, um elemento básico da subjetividade possa ter sido tão pouco examinado em relação à música, ou por que esta relação deva ter sido tão obsessivamente negada — até por uma figura como Ned Rorem, que fez farto alarde de sua homossexualidade em memórias e diários. O fato de pessoas homossexuais representarem posições estilísticas e ideológicas diferentes e às vezes opostas, independentemente do ramo da profissão musical a que se dediquem, depõe contra uma “sensibilidade homossexual” unificada na música e contra qualquer relação simples entre identidade sexual e expressão musical. Ele não corrobora a opinião que não haja conexão entre ambas.
Habilitando a estranha dissociação entre homossexualidade e música, apesar de ambas terem estado tão nitidamente entremeadas por todo um século, está o mecanismo descrito como o “segredo público”. Sua função “é não tanto ocultar o conhecimento quanto ocultar o conhecimento do conhecimento” (Miller 1988: 206). Seu efeito é reforçar as oposições binárias (público/privado, dentro/fora, heterossexualidade/homossexualidade) e consignar a homossexualidade à esfera privada, sempre no limiar da visibilidade e, portanto, sempre sob vigilância enquanto alternativa impensável. Na medida em que a música, arte da performance, deve ocupar a esfera pública com, por assim dizer, seus segredos todos em exibição, então aquilo que Miller chama duma “recuperação fantasmática” de proporções enormes necessita montar-se para impedir que os segredos façam qualquer diferença. Até que ponto uma resistência possa ser efetiva em tal situação é matéria de considerável debate em teoria queer. Alguns inclinam-se ao que Alan Sinfield (1994: 21–27) chama de modelo da cilada, derivado de Althusser e de várias interpretações de Foucault, no qual a subversão apenas contribui para a contenção ou para uma noção pós-modernista geral do sujeito como completamente determinado pela ideologia e, portanto, sem capacidade de ação. Teorias desenvolvidas a partir de Gramsci, Raymond Williams e Zizek, por outro lado, oferecem mais possibilidades de resistência efetiva ao recusarem um sistema totalizante e reconhecerem que qualquer “ideologia dominante”, ela própria, está sempre atravessando diversas perturbações internas as quais a dissidência pode reverter a seu favor em situações históricas particulares. “Assumir-se” tem sido a ação política mais inegavelmente efetiva desde os anos setenta. Épocas anteriores requereram táticas diversas. Das mais eficazes, com certa força ainda, é o camp, um estilo diruptivo de humor que desafia cânones de gosto e, por sua própria natureza, elude qualquer definição estável. Outras soluções houve para quem recusasse este estilo performativo auto-sinalizante. Britten, por exemplo, provavelmente tenha feito melhor em explorar o segredo público, tirando partido de seu sucesso para garantir a circulação irrestrita das críticas vigorosas à família, às relações heterossexuais, à religião organizada, à autoridade patriarcal, ao militarismo e a tudo mais em suas obras.
O gênero, propositalmente ignorado nesta lista, adiciona camadas de complexidade à situação social dos homossexuais em quase todos os contextos musicais do ocidente, como o fazem a raça e a etnicidade e a classe. O homossexual masculino desfrutou duma situação particularmente ambígua na maior parte dos contextos ocidentais porque, especialmente se branco, dispôs da opção de exercer o privilégio e o poder masculinos, desde que não fosse publicamente exposto. Alguns adeptos deste expediente comportaram-se de formas particularmente opressivas ou ofensivas para com os outros, pois freqüentemente supercompensaram na elaboração de seu disfarce. Por outro lado, as lésbicas foram tratadas como minoria, devido não só a sua sexualidade, mas também, na maior parte dos contextos musicais, a um sistema hierárquico de gênero que constrangeu todas as mulheres a certos papéis, como os de diva, harpista e pianista, castigou-as por transgredirem-nos e colocou severos obstáculos em seus caminhos para outros, como os de compositora, regente, saxofonista e empresária.
Este sistema (de modo algum extinto) exacerbou-se extraordinariamente no contexto das salas de concerto e recital com a ênfase da era romântica na obra de arte duradoura de “música absoluta” e, por conseguinte, em seu criador, que tornou-se argüivelmente mais poderoso, apesar da reação anti-romântica, em função da guerra ultramodernista ao executante virtuosístico não-subserviente (vide “Mulheres na Música” e “Feminismo”). Homossexuais masculinos e femininos tiveram assim experiências muito distintas em diversos universos musicais, mas a base de seu interesse comum é a codificação e a regulamentação dos papéis de gênero segundo posicionamentos e identidades sexuais compatíveis. O aquinhoamento do homossexual masculino com uma posição feminina — a única que a ideologia dominante conceder-lhe-á enquanto “homem falho” — espelha-se, ainda que inexatamente, no escárnio a uma lésbica desafiadora ou criativa cujos trabalhos são constantemente rotulados de “viris”, “masculinos” e “antinaturais”, ou “carentes do charme feminino que se poderia esperar duma compositora”, como o demonstram respostas críticas às músicas de Ethel Smyth e Rosalind Ellicott no final do século (Kertesz 1995, Fuller 1994). Que críticas similares se tenham endereçado àquele ícone da respeitabilidade feminil, a senhora H. H. A. Beach, quando escrevesse uma missa ou sinfonia vigorosas (o compositor George Chadwick chamou-a “um dos nossos”), mostra bem as formas conexas e interpostas da ginofobia (medo de mulheres) e da homofobia (medo de homossexuais), como no “protesto masculino” de Charles Ives (Solomon 1987, Tick in Solie org. 1993, Kramer 1995: 183–88).
Ives espelha a masculinidade ameaçada de modo geral, tendendo a ver todos os músicos e suas atividades, quaisquer que sejam seus gêneros ou sexualidades, como femininos e a valorizá-los (ou desvalorizá-los) correspondentemente. Uma vez que todos na música partilham em algum grau a pecha do efeminado ou feminizado, poderosas forças institucionais tiveram de mobilizar-se para neutralizar esta imagem, especialmente com a entrada da música nas universidades em grande escala após a Segunda Guerra Mundial. A ampla adoção duma técnica neo-serialista, o desenvolvimento de formas arcanas de análise musical, a separação entre uma arte erudita e qualquer forma de expressão cultural popular e a equiparação da erudição musical com a investigação científica são todos sinais dum discurso heteronormativo masculinista altamente racional dominante na música, um discurso assaz desafortunada mas adequadamente caracterizado pela palavra “disciplina”.
III. A música e o movimento de lésbicas e gueis
Na esteira do movimento pelos direitos civis dos anos cinqüenta, que começou a mudar a situação dos afro-americanos nos Estados Unidos, surgiram vários contradiscursos na Nova Esquerda, entre os quais um revigorado movimento feminista pelos direitos da mulher. Um movimento militante de lésbicas e gueis, fermentando em ambas as costas dos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial, foi catalizado em 1969 pelo motim de Stonewall, assim chamado em alusão ao bar guei de Nova Iorque cujos clientes, em sua maioria operários e transformistas [17] (alguns porto-riquenhos e negros), enfrentaram organizadamente a polícia, que realizava uma batida de rotina no estabelecimento. O movimento inspirou-se na luta das minorias raciais oprimidas, concebeu suas próprias táticas (o zap) [18] e vinculou sua teoria ao movimento de liberação sexual e às novas teorias feministas da opressão. O conflito e a posterior acomodação entre ativistas lésbicas e feministas hétero afloraram no final dos anos setenta em função duma Emenda de Igualdade de Direitos à constituição dos Estados Unidos e no seio da Organização Nacional em Prol das Mulheres (NOW), bem como no início dos anos oitenta em debates sobre a identidade lésbica, os silêncios e as práticas das mulheres, o aborto, a pornografia e o estupro. Textos decisivos na área são “Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence” de Adrienne Rich e “Thinking Sex: Notes for a Radical Theory of the Politics of Sexuality” de Gayle S. Rubin (ambos em Abelove, Barale e Halperin orgs 1993). Instaurou-se entre os vários contradiscursos o consenso que, se uma revolução sexual não se incorporasse a uma revolução política, não poderia haver transformação real da sociedade e das relações sociais. Construíram-se ainda alianças que levaram não só à inclusão de questões lésbicas, gueis, bissexuais, transgênero e transexuais numa designação genérica, mas também, um pouco depois, ao envolvimento das minorias sexuais nas políticas de raça e classe.
O ulterior alastramento global do movimento complementou-se com iniciativas de erudição humanística, consistindo (como no feminismo) tanto numa vertente histórica, destinada a revelar os “ocultados da história”, como numa vertente teórica, comprometida com as questões pertinentes de identidade e subjetividade sexuais e suas relações com a sociedade capitalista, embora com freqüência ambas as vertentes se entremetessem, especialmente em questões controvertidas de diferença nas práticas e categorias sexuais dos homens gueis, das mulheres lésbicas e das pessoas bissexuais, intersexuais e transgênero, dentro de cada um dos grupos e entre um grupo e outro, tanto interculturalmente como em momentos históricos específicos. Esta iniciativa de pesquisa acabou levando a uma situação na qual, de acordo com a panorâmica de Domna C. Stanton (1992: 1–46), a sexualidade moderna é tanto “a atividade humana mais saturada de sentido” (Eve Sedgwick) quanto “um sinal, um símbolo ou uma reflexão de quase tudo em nossa cultura” (Stephen Jay Gould) e, ainda, “o nome que se pode dar a um construto histórico” (Michel Foucault) de relações sociais e sexuais cujos conteúdos e sentidos estão em constante mudança e fluxo.
Desde o início, enxergou-se a identidade homossexual como contingente: “nossa homossexualidade é parte crucial de nossa identidade, não por nada de intrínseco àquela, mas porque a opressão sexual assim o quis” (Altman 1971: 230, 1993: 240). Dúvidas quanto à identidade persistiram, porém, por várias razões: as categorias de identidade eram consideradas por muitos como instrumentos da ordem homofóbica e heterossexista à qual desejavam opor-se; elas tendiam a delir “hifenizações” de identidades, no momento mesmo em que a dominação branca do movimento tornava-se alvo de ataques; e elas foram desalinhadas pela emergência do sujeito descentrado, dividido, do pensamento pós-moderno.
Assim, a ênfase deslocou-se da identidade para a representação. Pode-se ter uma idéia disso através da auto-apresentação de Morrisey como “um profeta do quarto gênero”, num trocadilho com o “terceiro gênero” da sexologia do século XIX e, ao mesmo tempo, numa recusa a ser determinado por ela (Hubbs 1996). Tentando estabelecer a autodeterminação no sujeito feminista, Sue-Ellen Case sugeriu que a interpretação de papéis na cultura de bar lésbica operária poderia reabilitar-se como um “sujeito sapatilha-sapatão combinado” (rememorativo do “j/e” de Monique Wittig, mas “substituindo a barra lacaniana por um bar de lésbicas”) que seduz o sistema de signos com artifício e camp ao invés de interiorizar os tormentos da ideologia dominante (Case in Abelove, Barale e Halperin orgs 1993: 294–306, para uma aplicação musical vide Peraino 1992). A música, especialmente a popular, com suas táticas lúdicas, provocantes ou diruptivas em torno da representação tanto vocal como visual do sexo e do gênero (vide Madonna, Prince ou Boy George), freqüentemente parece responder à idéia de Judith Butler destas características supostamente naturais como elocuções “performativas” (isto é, como atos de fala), às quais os sujeitos se submetem numa repetição forçada como parte da admissão à língua e à sociedade. Butler propõe a notável inversão segundo a qual “se um regime de sexualidade nos incumbe duma performance compulsória do sexo, então só pode ser através desta performance que o sistema binário do gênero e o sistema binário do sexo venham a ter qualquer inteligibilidade” (Butler in Abelove, Barale e Halperin orgs 1993: 307–20, para uma explicação musical vide Cusick in Barkin e Hamessley orgs 1998).
No estudo acadêmico da música, o garimpo das músicas lésbicas e gueis, a crítica de pressuposições heteronormativas em áreas como a teoria musical e uma exploração da música e da subjetividade também poderiam ter começado nos anos setenta. Mas a natureza hermética do discurso musicológico do pós-guerra e o policiamento da música, que levou muitos a aquiescerem ao status quo, impediram o processo, como impediram também a investigação feminista em musicologia e a aceitação de compositoras no repertório de concerto e na ópera. Este policiamento, às vezes manifesto, como na prisão de Henry Cowell (Hicks 1991), mas com mais freqüência silencioso e pérfido, é simbólico duma pressão mais geral, na maior parte das vezes não admitida, que se expressa, por exemplo, no recurso das mulheres ao trabalho fora do sistema. Às vezes, o policiamento foi mais silenciado que silencioso, como nos “expurgos de homossexuais”, que David Diamond afirma terem ocorrido durante os quarenta anos de Howard Hanson na direção da Eastman School of Music (Schwarz 1994). Normalmente — e mais avassaladoramente — o policiamento transformou-se em autopoliciamento. Vias de protesto, é claro, existiam ou podiam criar-se, como radicais de esquerda (Woody Guthrie, por exemplo) o demonstraram através dum renovado movimento de canções folclóricas nos anos sessenta. Durante os anos setenta, musicos lésbicos e gueis começaram a achar os meios de dar expressão musical a suas sexualidades de várias formas interessantes, freqüentemente através duma reinterpretação radical dum gênero ou duma instituição musical preexistente. A música de concerto e sua musicologia foram praticamente impermeáveis nesta fase, devido aos foros, às convenções e às instituições condutoras de sua execução, bem como à pressão ideológica asséptica do ultramodernismo. Até a ópera, com seu enorme séqüito de lésbicas e gueis (e carta branca ao ridículo), foi menos suscetível que o balé à subversão queer: La Gran Scena Opera Company (fundada em 1981) jamais se tornou tão bem sucedida quanto sua irmã mais velha, a companhia de balé virtuosístico de transformistas Les Ballets Trockaderos de Monte Carlo (fundada em 1974). Por outro lado, todo o universo da ópera (e, até certo ponto, o da comédia musical e outros gêneros de teatro musical) era há muito um palco onde gueis e lésbicas podíamos representar ou ver representada nossa presença e humanidade. Empresários, diretores, produtores, críticos, libretistas e compositores contribuíram para esta atmosfera, junto com cantores, personagens e papéis. “Onde mais”, pergunta Margaret Reynolds (in Blackmer e Smith orgs 1995: 133), “você pode ver duas mulheres fazendo amor em público?” Tais cópulas, acrescente-se, percorrem a gama que vai do principal da pantomima britânica das classes inferiores, de meia arrastão e pavoneamento amplo de quadris, ao aristocrático Oktavian dando a réplica macha ao fêmea da Marschallin numa alcova vienense fim-de-século, o que freqüentemente percebeu-se como — e provavelmente concebeu-se para abarcar — uma performance simbólica do desejo lésbico (Mary Garden recusou-se a “assumir-se” ao recusar o papel); e a probabilidade duma interpretação deste tipo cresceu quando o dogma da performance ultramoderna, antepondo a tessitura original à moderna suscetibilidade para o gênero, empurrou sopranos e mezzos de poderosas gargantas para os papéis de castrato. Cópulas femininas históricas sem travestimento podem, elas também, adquirir significação inédita em função da exposição a uma perspectiva marginal, como Dido e a Feiticeira na visão de Judith Peraino (in Blackmer e Smith orgs 1995) da ópera de Purcell. Dramas ou parábolas do enruste abundam: O rei Rogério de Szymanowski; The Bassarids de Henze; Albert Herring, Owen Wingrave e Morte em Veneza, de Britten. O Peter Grimes de Britten é uma poderosa alegoria à opressão homossexual (Brett 1977, 1983), numa linha já sugerida por óperas que exploram a opressão de mulheres, como a Katya Kabanova de Janácek e (particularmente) a Lady Macbeth de Mtsensk de Shostakovich. Personagens lésbicos e gueis “reais” são obviamente mais difíceis de se encontrar. Mel e Dov, o par inter-racial de The Knot Garden (1970) de Tippett, parecem ser os primeiros gueis assumidos da ópera; previsivelmente eles rompem, um deles retornando a um estilo heterossexual de vida. A Condessa Geschwitz, o único personagem heróico e verdadeiramente amante da Lulu de Berg, destaca-se como um exemplo resplendente duma músico-dramaturgia que consegue transcender o essencialismo e a estereotipia (vide Morris in Blackmer e Smith orgs 1995).
Anja Silja, ao centro, interpreta a Condessa Geschwitz na montagem da Lulu de Berg pela Ópera de Düsseldorf no ano 2000, foto de Eduard Straub.
Um fenômeno notável do período imediatamente após Stonewall foi o surgimento de cantoras-cancionistas, grupos musicais, coros, selos de gravação e companhias de produção lésbio-feministas ou “identificadas com a mulher” (Olivia e Redwood foram ambas fundadas em 1973). Apareceram também espaços como cafés para mulheres e festivais exclusivamente femininos com um público composto, em grande parte, de lésbicas: entre vinte festivais anuais em curso nos Estados Unidos, o maior é o Michigan Women’s Music Festival, fundado em 1975. Raramente irradiada ou televisionada, a “música de mulheres” foi um movimento de bases desde seus princípios nos álbuns Angry Atthis de Maxine Feldman, Stonewall Nation de Madeline Davis (ambos em 1971) e Lavender Jane Loves Women de Alix Dobkin (Women’s Wax Works, 1973), até seu crescimento e consumação no trabalho de artistas como Holly Near, Meg Christian e Cris Williamson, cujo álbum inicial, The Changer and the Changed (Olivia Records, 1975), foi descrito como “o álbum independente de maior vendagem de todos os tempos” (anúncio no All Music Guide de 1994, página 1039). Dando preferência aos instrumentos acústicos, esta música baseia-se em estilos de canção folclórica às vezes modulados pelo blues, pelo rock, pelo jazz, pelo reggae e até pela música clássica. Ao tratar abertamente do desejo e dos relacionamentos lésbicos e da crítica feminista ao patriarcado, à misoginia e à homofobia, a música de mulheres adquiriu importância como uma arena na qual uma comunidade lésbica pode forjar-se nos Estados Unidos.
Outro fenômeno do período foi o início de grupos musicais e coros especificamente lésbicos/gueis. Entre os mais antigos estavam a Victoria Woodhull All-Women’s Marching Band, de Nova Iorque (1973), cujo nome homenageava uma feminista e candidata presidencial do século XIX (e que não era um grupo exclusivamente lésbico, embora a canção tema fosse “The Dykes Go Marching In”), [24] e o Anna Crusis Women’s Choir, de Catherine Roma, na Philadelphia (1975), ainda uma das principais organizações para a execução da música nova de mulheres. O Gotham Male Chorus, fundado em 1977, passou mais tarde a incluir mulheres, transformando-se no Stonewall Chorale, o primeiro coro de lésbicas e gueis. Em 1978 Jon Sims fundou o San Francisco Gay Freedom Day Marching Band and Twirling Corps, que se tornou um conhecido ponto de convergência para as aspirações políticas da vasta comunidade de lésbicas e gueis daquela cidade; um Gay Men’s Chorus apareceu em seguida.
Conquanto várias destas iniciativas tenham começado como manifestações diversas de orgulho comunal, elas se desenvolveram pelo mundo como instituições e movimentos artísticos completos e duradouros. Os coros em particular medraram, fundando sua própria organização internacional, a Gay and Lesbian Association of Choruses (GALA), nos Gay Games de São Francisco em 1982. Eles atualmente ultrapassam em número os grupos musicais, que, no mesmo ano, fundaram uma associação nacional, a Lesbian and Gay Bands of America (LGBA). De modo particular, estas iniciativas contribuíram para a crítica queer das instituições musicais e da cultura autorizada ao misturar as músicas tradicionais, populares e cultas de todos os tipos num único concerto; e, através dum programa substancial de encomendas amparado por execuções e festivais freqüentes e platéias fiéis, estimularam a criatividade de compositores lésbicos e gueis, prestando apoio também a outras músicas contemporâneas significativas vistas como simpatizantes com o movimento. Em resposta a estes e outros estímulos, uma Sociedade de Compositores Gueis e Lésbicos fundou-se em São Francisco nos anos oitenta.
IV. O teatro musical, o jazz e a música popular
O teatro musical tem sido um lugar privilegiado de identificação e expressão gueis, provavelmente ultrapassando até a ópera neste aspecto. Os homens gueis têm não só tido grande afinidade com ele como também participado em todos os níveis de sua produção. Contam-se entre eles líderes da área como Cole Porter, Ivor Novello, Lorenz Hart, Noël Coward, Arthur Laurents, Leonard Bernstein e Stephen Sondheim. Mas se o sonho de todo o jovem guei sensível era tomar de assalto a Broadway ou o West End, as temáticas reais do teatro musical eram tão heterossexistas quanto as de qualquer outra forma de representação da idade pré-Stonewall. Ainda assim, acharam-se maneiras de introduzir mensagens cifradas ou nem tanto, como “You’re a Queer One, Julie Jordan” (Carousel, 1945), para uma audiência entendida ao mesmo tempo que se permanecia dentro dos limites convencionais da narrativa. Estas mensagens podiam veicular-se pelo título, como em Gay’s the Word, o último trabalho de Novello (1950); pela letra, como em “Farming” de Porter (vide Bronski 1984: 113) ou “Mad about the Boy” de Coward (em Words and Music, 1933), esta com referências crípticas a A. E. Housman e a Greta Garbo; pelos personagens e a trama, como na Maria “buliçosa” da Noviça rebelde (Wolf 1996); e por intérpretes como Mary Martin, uma lésbica travestida no papel de Peter Pan (Wolf 1997). Há também uma longa tradição de apropriação do material de musicais para uso em todo e qualquer contexto guei imaginável. Com a articulação da identidade guei e lésbica nos anos setenta, começaram a aparecer os musicais com temas ou personagens gueis, muitos deles sucessos comerciais do teatrão. Se Cabaret (Masteroff/Kander/Ebb, 1966) tanto espetacularizou quanto mascarou a homossexualidade e Applause (Comden/Green/Strauss/Adams, 1970) apresentou-a como uma patologia, A Chorus Line (Hamlisch/Kirkwood/Dante/Kleban, 1975), de Michael Bennett, sentimentalizou-a de modo tipicamente liberal. A gaiola das loucas (Fierstein/Herman, 1983) retrata afetuosamente um casal guei no qual um dos membros é um transformista e O beijo da mulher aranha (McNally/Kander/Ebb, 1992) adaptou o vigoroso romance de Manuel Puig sobre a crescente ligação entre dois prisioneiros, um homossexual e um heterossexual. O teatro musical chegou a lidar com as crises do HIV e da AIDS, notadamente em Falsettoland (1990), a parte final da trilogia de William Finn, e também em Rent (1996), de Jonathan Larson, baseada na Bohème de Puccini.
A relação mais limitada do jazz com a homossexualidade se pode delinear através de duas carreiras. Billy (Dorothy) Lee Tipton, pianista de jazz, realizou uma performance de gênero como uma transformista despercebida, mas suas improvisações impecáveis, seu dom para a mímica, seus casamentos com o mesmo sexo e seus filhos adotivos podem ter tido mais a ver com a busca do sucesso numa música dominada por homens e em seus espaços do que com a busca do orgasmo num smoking e pênis de borracha [29] e servem para mostrar que a diferença está no olho de quem vê (Middlebrook 1998). Billy Strayhorn, o compositor dum dos títulos mais famosos da história do jazz, “Take the A Train”, e de vários outros, a quem muitos associam a seu mentor, Duke Ellington, parece ter voluntariamente aceito um anonimato factual e a ocultação de seu vasto talento sob a proteção compreensiva e afetuosa de Ellington (Hajdu 1996: 79–80) para ser abertamente guei. A lenda queer vê no jazz (como no heavy metal) e em seu público a própria encarnação da heterossexualidade, mas John Gill (1995) explora esta meia-verdade e critica atitudes para com músicos de jazz gueis ou bissexuais como Sun Ra, Cecil Taylor e Gary Burton de maneira a abrir a discussão.
A longa tradição de imitadores de homens e mulheres que sempre cantaram em seus shows, diferentemente das sincronizações labiais de transformistas da era tecnológica, está intimamente ligada à presença e representação queer na cultura popular. A famosa imitadora de homens assumidamente lésbica Gladys Bentley, que atraiu ricos e famosos para seus shows no Harlem e introduziu o scat-singing, as paródias improvisadas lascivas de canções populares e as letras lésbicas explícitas em seus shows, representa um extremo glorioso do entreguerras. Sua voz forte, arrebatada, alça-se às vezes ao que soa como um falsete masculino, irrompendo no que Emma Calvé chamou de “quarta voz” para marcar o seu “terceiro sexo”. Pelo menos nos Estados Unidos, o transformismo e (em menor grau) a imitação de homens por mulheres carregaram o estigma da liminaridade de gênero que também marcou a homossexualidade, levando-os a serem banidos em vários lugares (ex., Los Angeles) durante os repressivos anos trinta. Por outro lado, o transformismo britânico, sobrevivendo até a era da televisão através de artistas como Benny Hill, indica a que ponto tais shows podem contribuir para institucionalizar a homofobia através do ridículo, ao invés da incitação ativa ao ódio. As imitações e a música popular não escaparam à força do enruste e do “contrato” que músicos eruditos foram obrigados a assinar. Até Julian Eltinge, talvez o mais célebre representador de mulheres da primeira metade do século (com uma bela voz de contralto), foi a extremos para esconder sua homossexualidade; na verdade, vários astros pop têm demonstrado extraordinária relutância com a revelação de sua orientação sexual (Rodger 1998).
E todavia Ma Rainey e Bessie Smith puderam gravar certo número de canções declaradamente lésbicas nos anos vinte e performers lésbicos e gueis tornar-se populares na “febre de frescura” da era da lei seca nova-iorquina (Chauncey 1994). Noël Coward e Cole Porter pouco se importaram com esconder seu interesse no desejo pelo mesmo sexo atrás da insinuação sexual tingida de camp, a qual funciona, no contexto do teatro da metade do século, como um código, a ser decifrado pelos entendedores homossexuais e passar impercebido ou despercebido pelos outros. Mais tarde, o rock and roll incluiu a homossexualidade entre seus efeitos de contracultura através de artistas bandeirosos como Richard Penniman (“Little Richard”) e canções como seu sucesso de 1956, “Tutti Frutti”, ou até o “Jailhouse Rock” (1957) de Elvis Presley, com a famosa referência ao homoerotismo atrás das grades. Grupos posteriores como o Doors (Jim Morrison cantando “I’m a Backdoor Man” em 1968) e os Rolling Stones (cujo notório “Cocksucker Blues” de 1970 a Decca se recusou a lançar) mantiveram esta tradição. Associado quase que exclusivamente a George Harrison e aos Beatles, o “raga-rock” foi de fato iniciado pelo cantor e compositor principal dos Kinks,Ray Davies, com uma canção de influência indiana sobre sua própria sexualidade, “See My Friends” (1965); ele confirma a conexão freqüentemente observada entre o exotismo ou o orientalismo e a cultura homossexual ocidental de todos os tipos (Bellman 1998). Mais alguns passos levariam à “Walk on the Wild Side” (1972) de Lou Reed, com seu tributo à turma nova-iorquina de Andy Warhol, já refletida no trabalho do influente grupo Velvet Underground; à imorredoura canção de amor guei de Elton John, “Daniel”; a “The Killing of Georgie” (1976) de Rod Stewart, o primeiro sucesso na lista das quarenta mais a tratar de gueis de modo inequívoco; e ao memorativo “Glad to be Gay” (1977) de Tom Robinson. Este período conheceu ainda certo número de cantoras independentes (e até rebeldes). Janis Joplin, cujas relações mais importantes foram com mulheres e que parecia tão sem pudor do fato quanto do resto de sua animada vida, possuía uma intensidade que poderia ter fundado todo um movimento, não fosse sua morte prematura em 1970. Dusty Springfield, a arrebatada cantora de soul britânica que foi um ícone lésbico, sobreviveu ao declínio de sua carreira nos anos setenta e consolidou seu público guei ao gravar mais tarde com os Pet Shop Boys.
Nos anos oitenta a grande indústria musical parecia responder ao crescente conservadorismo da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos enfiando mais artistas e músicas no armário. Por exemplo, David Bowie e outros astros do glam-rock, que haviam respondido ao balanço-pros-dois-lados dos anos setenta, deixaram de alardear sua ambivalência sexual ou de pretender serem gueis e artistas gueis na grande mídia se resguardaram e continuaram criptografando suas canções. Alguns grupos masculinos britânicos com vários gueis ou uma maioria deles — Soft Cell, Frankie Goes to Hollywood, Erasure, Pet Shop Boys — mantiveram uma discrição de fachada. Mesmo os defletores de gênero Boy George e o Culture Club continuaram com evasivas (como a observação de Boy George sobre preferir uma boa xícara de chá ao sexo) muito depois de quase todos terem cessado de especular a seu respeito. Morrissey, como vimos, teorizou esta evasividade. Jimmy Somerville e seu grupo Bronski Beat foram uma exceção notável, interpretando canções assumidas duma forma assumida enquanto galgavam as paradas de sucesso. O duo assumidamente guei Romanovsky e Phillips tornou-se amplamente conhecido e ultrapassou o folk de São Francisco, onde começara, com o segundo álbum, Trouble in Paradise (1986). Surpreendentemente, o melancólico cantor de baladas Johnny Mathis, há muito um ídolo de jovens gueis emotivos, assumiu-se publicamente em 1982 sem grande estardalhaço.
V. A música e a crise da AIDS e do HIV
A crescente crise em torno da AIDS e da infecção HIV (a partir de cerca de 1981), crise esta que, por ter atingido inicialmente homossexuais masculinos e usuários de drogas intravenosas nas sociedades ocidentais, recebeu a princípio escassa atenção dos governos, terminou por estimular o ativismo durante os anos Reagan/Bush-Thatcher. As comunidades artísticas, afetadas de modo particularmente duro por esta pandemia, foram afetadas também por medidas repressivas como os ataques do Partido Republicano ao National Endowment for the Arts, nos Estados Unidos, e a Cláusula 28 do British Local Government Act (1988), que proibiu aos governos locais o financiamento ou a “promoção intencional” da homossexualidade e às escolas públicas seu ensino como “pretensa relação familiar”. O sinal verde para a era possivelmente tenha sido a opinião majoritária da Suprema Corte dos Estados Unidos no notório caso Bowers versus Hardwick de 1986, que manteve as leis contra a sodomia da Georgia e considerou “frívola” a reivindicação dum direito de adultos anuentes entregarem-se privadamente a atos com o mesmo sexo (vide Sedgwick 1990: 6–7 e 74–82 para uma análise cultural do caso). A resultante onda de politização das artes gerou um senso de comunidade na música, manifesto nos numerosos eventos beneficentes e homenagens relacionados à AIDS do final dos anos oitenta e início dos noventa: por exemplo, o gigantesco Live Aids no Wembley Stadium e o posterior tributo a Freddie Mercury, uma das várias vítimas na música popular; o sucesso de Dionne Warwick e Elton John, “That’s What Friends Are For”, em 1985; concertos promovidos por organizações de música clássica; e uma série de obras comemorativas. Entre estas, a Sinfonia Número Um, de John Corigliano (1989), e um AIDS Quilt Songbook coletivo, em desenvolvimento (primeira execução no Alice Tully Hall, de Nova Iorque, em junho de 1992), alusivo ao projeto NAMES (uma obra de arte coletiva internacional com mais de quarenta e três mil painéis homenageando individualmente os mortos da AIDS). Tanto um trabalho de protesto quanto uma homenagem, o projeto de três álbuns de Diamanda Galás, iniciado em São Francisco em 1984 com o título Masque of the Red Death (segundo Edgar Allen Poe), tornou-se finalmente a Plague Mass, em quatro movimentos (como foi gravada na Catedral do Divino São João, em Nova Iorque, em 1990). Deve-se mencionar ainda o cancionista e ativista da AIDS Michel Callen, membro do grupo a capela assumidamente guei Flirtations, que também lançou um álbum solo em 1988; Holly Johnson, do Frankie Goes to Hollywood, e Brian Grillo, do Extra Fancy, vieram ambos a público como abertamente gueis e soropositivos. Uma das primeiras vítimas da doença foi o artista alemão Klaus Nomi (falecido em seis de agosto de 1983), célebre por suas roupas bizarras, sua voz camaleônica e seu repertório musical invulgar; passando dum barítono chão de cabaré a um hirto falsete soprano e justapondo canções populares a árias operísticas, ele é famoso entre gueis, especialmente na Europa, por sua obsedante interpretação soprano de “Song of the Cold Genius”, do Rei Artur de Purcell.
Um traço do efeito da AIDS e do HIV na música foi a reutilização e reinterpretação de músicas anteriores associadas à consciência guei. Dois famosos sucessos disco do Village People, cujo criador, Jacques Morali, morreu de AIDS em 1991, voltaram alusivamente à baila: “Go West”, como um hino da AIDS pelos Pet Shop Boys, e “YMCA”, numa versão lúgubre, em estilo “música clássica”, para celo, voz e violão com clarinete obligato, no filme Longtime Companion (1990). Este arranjo hilariante, número de abertura dum concerto “Living with AIDS”, quase no final do filme, alcança vários significados — carpindo os mortos recentes (bem como a era da liberdade sexual e sua música) e incitando à sobrevivência através do humor e da ironia gueis. O primeiro CD da série “Red Hot” da Chrysalis, promovendo uma conscientização para a AIDS e beneficiando a pesquisa e a assistência a ela relacionadas, consistiu de versões cover de Cole Porter por vários artistas, num contexto que deu um sentido novo e pungente a canções como “I’ve Got You Under My Skin”. A gravação não só transformou as músicas de Porter em “canções gueis” pela primeira vez como também transmitiu ao ouvinte uma advertência quanto a deixar a música “reforçar um sentido geral de abstração social”. Embora lésbicas e gueis tenham concebido formas mais radicais de protesto social durante o mesmo período (ex., ACT-UP, Lesbian Avengers, OutRage! e Queer Nation), a adoção por pessoas liberais em geral duma questão de enorme influência sobre a comunidade queer marcou uma nítida mudança, e o apoio foi particularmente forte na música e em outras áreas artísticas.
VI. Acontecimentos dos anos noventa
Esta segunda onda de ação política coincidiu com mudanças na musicologia e na crítica ocasionadas pelo impacto tardio de modos de pensar interdisciplinares pós-estruturais. Um fenômeno chamado “nova musicologia” deu início a um processo de despojar a música absoluta da ideologia dos valores universais, da transcendência e da autonomia. A nova musicologia preconizou ainda uma prática crítica mais inclusiva e ao mesmo tempo mais firmemente localizada, que se recusou a deixar a categoria “música” não-marcada, à maneira tradicional, preferindo abarcar todos os fenômenos musicais e evitar comparações sem sentido entre gêneros distintos e práticas culturais distintas. Surgiu, por volta de 1990, um grupo de estudiosos e críticos lésbicos e gueis dispostos a trabalhar em questões lésbicas e gueis com um conjunto de procedimentos oriundos das críticas feminista e pós-estrutural. Como as organizações musicais lésbicas e gueis antes dele, este grupo também ignorou os limites tradicionais de gênero. A fundação do Grupo de Estudos Gueis e Lésbicos (GLSG) da Sociedade Musicológica Americana (AMS) em 1989 constituiu um reconhecimento do fenômeno. Um dos resultados foi mais destaque para os compositores lésbicos e gueis da era após a Segunda Guerra Mundial. Nenhuma lésbica na música, antes ou depois de Ethel Smyth, esteve tão publicamente comprometida com o ativismo feminista ou foi tão franca a respeito do desejo pelo mesmo sexo quanto Pauline Oliveros, que representou eloqüentemente seu próprio feminismo e comunidade lésbicos no universo da vanguarda norte-americana desde os anos sessenta. Lou Harrison, cuja fama vem crescendo, sempre foi positivo acerca de sua identidade guei. A morte de John Cage em 1992 abriu caminho para discussões há muito proteladas sobre sua união com Merce Cunningham e o radicalismo que não chegou ao ponto de declarar sua sexualidade. Importante, em meados dos anos noventa, foi a auto-identificação de onze compositores gueis — Chester Biscardi, Conrad Cummings, Chris DeBlasio, Robert Helps, William Hibberd, Lee Hoiby, Jerry Hunt, Robert Maggio, Ned Rorem, David del Tredici e Lou Harrison — numa gravação da Composers Recordings Inc. (CRI) intitulada “Gay American Composers” (1996), à qual seguiu-se, um ano mais tarde, um CD dedicado a uma generosa parcela duma geração masculina anterior — Barber, Blitzstein, Cage, Copland, Cowell, Harrison, Nikolais, Partch, Thomson e Ben Weber — e um terceiro promovendo compositoras lésbicas contemporâneas: Ruth E. Anderson, Eve Beglarian, Madelyn Byrne, Lori Freedman, Jennifer Higdon, Paula M. Kimper, Marilyn Lerner, Annea Lockwood, Linda Montano, Pauline Oliveros e Nurit Tilles. [39] Estes nomes de modo algum exaurem os fundos possíveis: a música de Linda Dusman, uma escritora e compositora lésbica, também poderia incluir-se aqui, bem como a de Laura Karpman, uma compositora cujo trabalho tem aparecido bastante na televisão; entre os compositores gueis, com forte presença no repertório dos coros, estão Byron Adams, Roger Bourland, David Conte e Lee Ganon. Várias das grandes companhias, como a BMG, a Teldec e a RCA, já haviam lançado gravações com títulos como Out Classics, [40] Sensual Classics e Classical Erotica, mas o que estas gravações exemplificaram foi sobretudo a incrível transformação do desejo guei ou lésbico em bem de consumo e sua exploração comercial. Musicistas e compositoras lésbicas, em particular, mantêm uma tradição não só de permanecerem fora das redes comerciais e institucionais como também também de resistirem a todos os modelos musicais, e o trabalho da compositora Sorrel Hays (que já gravara com o nome de Doris Hay, uma das principais intérpretes pianísticas de Henry Cowell) bem como o da performer e compositora Meredith Monk mantêm a força desta tradição, num tempo em que artistas lésbicas e gueis se vêem sob crescente pressão para aderirem à grande mídia.
A presença guei na música foi realçada durante os anos noventa por trabalhos como Of Rage and Remembrance, de John Corigliano, uma nova versão do terceiro movimento de sua Sinfonia Número Um, incorporando coro e solistas num texto de William Hoffman, o libretista de The Ghosts of Versailles, e, numa surpreendente aplicação da técnica aleatória, os nomes dos amigos pessoais que ambos perderam para a AIDS aos quais desejaram prestar homenagem. Harvey Milk, uma ópera de Stewart Wallace e Michael Korie sobre a vida e o tempo do ativista guei assassinado em 1978, não foi um sucesso de crítica. Mas a ópera guei e lésbica, como representada por duas estréias de sucesso em 1998, Thomas Chatterton de Matthias Pintscher (Dresden) e Patience and Sarah de Paula M. Kimper (Nova Iorque), tornou-se mais viável à medida que as companhias de ópera reconheceram a força do apoio lésbico e guei. Na música popular, os anos noventa assistiram também a uma revogação da abordagem cautelosa dos oitenta e à aparição na grande mídia de musicistas abertamente lésbicas advindas do espaço alternativo da música de mulheres. A extraordinária cantora-cancionista k. d. lang, que já havia invadido o campo heterossexista da música country com canções de forte identificação feminina e, em conseqüência, conquistado uma audiência lésbica, assumiu-se decisivamente em 1992 (vide Mockus in Brett, Wood e Thomas orgs 1994). O mesmo o fizeram Melissa Etheridge e as Indigo Girls, o que deu às lésbicas uma nítida representação na cultura popular, consolidando, por assim dizer, as representações sexualmente ambíguas de Tracy Chapman, Michelle Shocked e Madonna, bem como as imagens francamente lésbicas de Phranc e das Two Nice Girls. O aumento de grupos punk femininos e o fenômeno riot grrrl do Pacífico noroeste significaram que as lésbicas também podiam projetar uma imagem mais agressiva na música, como no trabalho dos grupos Tribe 8, Bikini Kill e Team Dresch (vide Coulombe in Barkin e Hamessley orgs 1998).
Até então ambivalente, Neil Tennant, dos Pet Shop Boys, assumiu-se em 1994; Michel Stipe, do R.E.M. (como bissexual), em 1995; e George Michael em 1998. O mesmo o fez (no Advocate de 12 de maio de 1998) Rob Halford, famoso por três décadas como líder do grupo heavy metal Judas Priest. Ele revelou quão simples lhe fora transferir os atavios às vezes apavorantes da cena leather guei para o palco metal sem perturbar uma audiência masculina primariamente hétero. Um público heavy-metal guei de entendedores, investido de supermasculinidade, havia, é claro, lido/ouvido homoerótica em vez de confraternização homossocial hétero o tempo todo (Walser 1993:108–36). Ao findar do século, numerosos cantores lésbicos e gueis e grupos de queercore tinham um público popular híbrido ou gravavam em selos da grande mídia, entre eles Ani diFranco, Echobelly, Janis Ian, Dan Martin (o fundador de OutMusic, uma organização de compositores e letristas lésbicos e gueis) e Michael Biello, Mouth Almighty, Me’Shell NdegéOcello, Pansy Division, Linda Perry, Placebo, Queer Conscience, Lucy Ray, Skin, Debbie Smith, Suede, Skunk Anansie e Sister George. A instituição dos Gay/Lesbian American Music Awards (GLAMA), em 1996, contribui bastante para consolidar e estimular um campo de inicitiavas já prolífico.
Assim, ao final dos anos noventa, uma forma de arte, uma disciplina acadêmica e uma mídia jornalística que haviam todas rechaçado veementemente a noção de que sexualidades desviantes tivessem qualquer coisa a ver consigo, apesar de evidências em contrário pulurarem, deparam-se repentinamente com uma pequena inundação de material “queer”, para usar o termo que, outrora uma forma de insulto, foi recuperado por volta de 1990 como uma designação genérica para a aliança de pessoas de todas as sexualidades inortodoxas com aqueles dispostos a associarem-se com elas.
VII. Divas e discotecas
Até aqui, a discussão seguiu a linha modernista tradicional de enfatizar a produção: o compositor e, talvez em menor grau, o intérprete. Uma maneira possivelmente melhor de definir “música lésbica e guei”, respondendo também ao argumento de serem a sexualidade e o gênero “inaudíveis nas próprias notas”, é inverter este modelo e, invocando as “políticas e epistemologias da localidade, do posicionamento e da situação” (Haraway 1991: 196), considerar tanto a audiência quanto os espaços específicos como criadores (ainda que apenas por contingência e momentaneamente) dum rótulo para a música. Em resposta à questão “o que é gay music”, formulada pela revista Out (novembro de 1996, pp 108–14) a certo número de músicos e profissionais da música, Peter Rauhofer afirmou: “tem tudo a ver com o efeito diva, uma atitude com a qual os gueis imediatamente se identificam”. Esta declaração não deixa de ser atraente enquanto uma generalização que perpassa as culturas homossexuais ocidentais do século XX, abarcando tanto lésbicas quanto gueis. Entre homens afluentes, o efeito diva tende a produzir uma devoção por sopranos (principalmente Joan Sutherland ou Maria Callas, esta o pivô da bem sucedida peça de Terrence McNally, A Traviata de Lisboa) e uma posição subjetiva conhecida como a da Opera Queen, amplamente discutida e teorizada (Bronski 1984, Koestenbaum 1993, Mordden 1984, Morris in Solie org. 1993, Robinson 1994). A devoção lésbica pode ser igualmente intensa, como o ilustra a história da jovem que cometeu suicídio após ter-lhe sido vetado o ingresso ao camarim de Mary Garden (Castle in Blackmer e Smith orgs 1995: 25–26). Ela difere por afixar-se a sopranos dramáticos, mezzo-sopranos ou contraltos, especialmente se suspeitos de “serem” (como Garden) ou se freqüentemente travestidos em papéis como Orfeu, Oktavian ou o Poeta de Ariadne auf Naxos. A tradição é anterior à Garden (George Sand era “louca” pela Malibran e tanto ela quanto George Eliot encontraram inspiração literária no canto de Pauline Viardot-Garcia) e incluiu entre suas divas célebres Olive Fremstad, a famosa soprano wagneriana máscula que é a heroína de The Song of the Lark de Willa Cather e Of Lena Geyer de Marcia Davenport (Castle in Blackmer e Smith orgs 1995, Wood in Brett, Wood e Thomas orgs 1994).
O efeito diva vigora também na música popular. Se cultura queer fosse religião, Judy Garland certamente estaria entre seus santos principais, seu céu “Somewhere over the Rainbow” (um reconfortante refúgio da opressão), O Mágico de Oz seria uma sagrada escritura e “amigo de Dorothy” o mantra de seus devotos. A filha de Garland, Liza Minelli, quase estabeleceu uma sucessão apostólica ao estrelar Cabaret, a adaptação musical de Berlin Stories, de Christopher Isherwood. Entre outras divas notáveis poderiam citar-se Marlene Dietrich, Mae West, Edith Piaf, Zarah Leander (a diva de voz profunda da tela alemã), Bette Midler (que começou sua carreira numa casa de banhos nova-iorquina), Barbra Streisand e Madonna. Se estes ídolos tiveram ou não relações amorosas com o mesmo sexo, é irrelevante: mais decisivas são certas características retratadas em seu canto, como a vulnerabilidade (ou o sofrimento real) misturada ao desafio, com as quais vários de seus fãs têm empatia. A qualidade de seu humor também é um ingrediente importante. Várias das cantoras mencionadas, notadamente k. d. lang, exploram o efeito diva, possivelmente sem chegarem a alcançar (ou desejar) o status duma Garden, duma Callas, duma Ferrier ou duma Garland.
O efeito diva também tem alguma influência sobre audiências exclusivamente hétero; quando isto ocorre, imbui-se freqüentemente nos elementos camp de excesso e estilo associados aos homossexuais. Liberace, por exemplo, atraiu uma audiência vasta (mas nem guei nem lésbica) pelo cultivo duma astuciosa mistura de sentimentalismo e travestismo em torno de seus candelabros e piano. O repertório incluía o camp musical e o indumentário; por exemplo, seu inspirado travestimento de “Night and Day” de Cole Porter na alta-costura da “Sonata ao luar” de Beethoven (para uma avaliação cultural, vide Kopelson 1996:139–85 e Garber 1992). Sua manipulação do “segredo público” foi mais extrema do que a da soma de qualquer número de outros músicos gueis menos escandalosos, mas também enrustidos. Os indicadores publicamente ostentados duma identidade oculta permitiram àqueles que o adoravam usar esta adoração (e o amor pela mãe, tanto o de Liberace quanto o deles) para apoiar seu próprio senso de diferença e superioridade.
Outra notável esfera de interesse e patrocínio queer tem sido a pista de dança. A disco music é denegrida em vários quadrantes, mas a vida dos dance clubs, dum extremo ao outro da Europa e dos Estados Unidos, transformou-se nos anos setenta com o advento de Gloria Gaynor, Patti Labelle, as Pointer Sisters, Sister Sledge, Donna Summer, Sylvester, o Village People, as Weather Girls e dúzias de outros cujas batidas rápidas e pesadas, sons imaginosamente sintetizados e sentimentos reconfortantes fizeram homens gueis e, às vezes, lésbicas girarem e celebrarem a “família” em espaços queer seguros, que estavam perto de realizar, para o momento corporificado e ocasionalmente transcendente, o que a ópera e O Mágico de Oz mal tinham podido começar a sugerir. Formas mais localizadas e especializadas, como a house music dos anos oitenta, ainda mais rápida e forte, e mais tarde a acid music e o techno, desenvolveram-se à medida que a disco se heterossexualizava e popularizava. Nos anos noventa, a dance music guei foi muito influenciada pela arte de RuPaul, provavelmente a drag mais bem sucedida da indústria do disco. Como o rock and roll antes delas, a disco e a house estavam profundamente impregnadas dos sons e estilos de interpretação negros, a diva afro-americana, de Grace Jones a RuPaul, sendo tão importante aqui quanto na ópera. Elas deslocaram momentaneamente as tensões raciais, criando uma arena idealizada para a performance da identidade queer (Currid 1995). Considerar mesmo a disco uma categoria de música é inadequado: disco é “também tipos de dança, clube, moda, filme etc; numa palavra, uma certa sensibilidade, manifesta em músicas, clubes etc, histórica e culturalmente específica, ideológica e esteticamente determinada — e sobre a qual vale a pena pensar” (Dyer 1992: 149). É o que há de mais próximo à gay music, se poderia crer; todavia, ao colocar a performatividade queer no tablado da “diva-inidade” negra, a disco conduz a um jogo complicado de identificações, como Currid (1995) mostra.
O foco numa audiência específica e em seu “conhecimento situado” pode também lançar por terra argumentos críticos tradicionais que buscam erradicar toda a identidade na música, salvo a nacionalidade. A recensão do New York Times (Paul Griffiths, 7 de julho de 1998) da ópera de Kimper e da gravação da música de compositoras lésbicas pela CRI, ambas já citadas, chega à conclusão “que a preferência sexual, como o sexo, é inaudível” e chama tal conclusão de “inevitável”. A resposta imediatamente se oferece: “inaudível a quem”? A crítica modernista, ansiosa por deter a proliferação de significados e manter as formas de autoridade e os cânones de gosto em seus devidos lugares, joga o ônus da prova sobre “a música em si”. Mas as notas não se deixam tão facilmente separar de seu contexto (de execução, palco, gênero e audiência, bem como alusão musical): se despojadas de todas as associações — uma impossibilidade —, não podem gerar sentido.
Nuns poucos casos, como nas justaposições extravagantes da música instrumental de Poulenc, uma sensibilidade homossexual é claramente audível, mas ainda assim só para quem tenha alguma compreensão da estética daquele fenômeno muito discutido mas dificilmente definido chamado “camp”. Além disso, o orientalismo ou o exotismo duma ampla gama das músicas dos séculos XIX e XX pode ser ouvido não meramente como aculturação decorativa, mas como um descontentamento audível com os costumes ocidentais prevalentes. Estratégias musicais mais complicadas, como o conjunto de interações tonais e motívicas que assinalam a tragédia da opressão interiorizada em Peter Grimes, podem revelar-se à medida que a crítica se envolva mais ampla e profundamente com estas questões. Tais indicadores, todavia, são possivelmente mais comuns na cultura homossexual (enrustida), na qual a música clássica está tão profundamente implicada, do que na música abertamente lésbica ou guei, como os tipos alternativos de música de mulheres ou a disco, já citadas. Aqui, o contexto exerce uma influência tão poderosa que chega a derrubar associações convencionais. Até a abertura da Quinta Sinfonia de Beethoven, aquele modelo quintessencial de masculinidade heróica, cumpriu seu destino guei quando, empetecada com uma batida pesada e outros apetrechos, estourou no cenário disco nos anos setenta como “Uma Quinta de Beethoven”.
“A identidade da música é a questão sagrada”, explica Philip Bohlman (referindo-se a McClary 1991): “Que as mulheres, os trabalhadores da classe operária, os gueis e as lésbicas, os negros, as comunidades religiosas ou étnicas ou quaisquer outros possam identificar a música de alguma outra maneira ou imaginar que ela incorpore espaços culturais completamente diferentes e diferenciados, torna-se uma blasfêmia contra ‘o que a MÚSICA é’. Imaginada desta maneira, ela pode não mais ser MÚSICA” (Bohlman 1993: 417).
Uma estratégia importante entre críticos lésbicos e gueis, portanto, é insistir na possibilidade e na importância tanto de recepções diferentes de todos os tipos de música, uma insistência capaz de minar qualquer autoridade ou objetividade que a crítica possa reivindicar para si, quanto da destruição do ímpeto essencializante ou minoritarizante de confinar a crítica da música lésbica e guei à análise do estilo. Numa declaração extremamente radical, bem no início da história do movimento (primeira conferência de Teoria Feminista e Música, em 1991), Suzanne Cusick revindicou e explorou uma relação lésbica especial com a própria música (Brett, Wood e Thomas orgs 1994). Chegando (da forma mais suave), por assim dizer, às “vias de fato”, este gesto preparou o terreno para boa parte do trabalho crítico subseqüente (para complicar ainda mais o quadro, nem todo ele escrito por críticos que se auto-identificam como lésbicos, gueis ou bissexuais) que recusa protocolos prévios num esforço para alcançar concepções imaginativas e variadas quanto a que tipos de fenômenos podem coexistir como “música lésbica e guei” — ou queer —, e como estes fenômenos podem relacionar-se com conjuntos inteiros de outras posições, inclusive a hegemônica.
VIII. Antropologia e História
Até aqui a discussão disse respeito ao século XX, à Europa, à América do Norte e a seus postos avançados e restringiu-se, em grande medida, a fenômenos musicais recentes. Pode-se argumentar que a “música lésbica e guei” esteja confinada a estas épocas e locais específicos e, ainda assim, necessite maior flexão para descrever o que, exatamente, estava acontecendo naqueles clubes da Alemanha ocidental ou para notar que o Front d’Alliberament Gai de Catalunya (FAGC), fundado em 1977, estava mais ligado à independência catalã e à sentida canção catalã do que à disco music norte-americana. Para além do “ocidente”, o dilema torna-se ainda mais claro. Nas músicas não-ocidentais, as ambigüidades e inversões de gênero e sexo, para não falar nas práticas sexuais com o mesmo sexo, encontradas em muitas culturas, com músicas diferentes e sexualidades diferentes, estimularam a imaginação do ocidente, que se sentiu atraído por elas e as fantasiou. As inversões simbólicas em torno do talèdhèk masculino travestido na canção e na dança balinesas; a performance transexual pelos espíritos-guia, ou halaa, entre os povos Temiar; o mahu havaiano de gênero indeterminado; ou o mapuche do sul dos Andes: tudo isto depõe a favor da advertência que “guei, lésbica, bissexual, homossexual, heterossexual [...] não manifestam senão uma visão fugidia e limitada das variações em gênero que estão começando a emergir da pesquisa intercultural” e “reduzem a complexidade do ser pessoa a meia dúzia de oposições arquitetadas por um discurso etnocêntrico” (Robertson 1992).
Algumas das músicas das culturas não-ocidentais tornaram-se matéria-prima para compositores homossexuais do ocidente caçando em terras proibidas, mas não se podem amalgamar ou sujeitar a uma categoria ocidental. Compositores homossexuais ou pederastas, de Saint-Saëns em diante, também foram particularmente suscetíveis às atrações do orientalismo devido talvez à projeção do sexo ilícito apontada na crítica de Said (1978), talvez, como Lou Harrison o sugeriu, a uma identificação com o Outro ou até (como no caso de Cage) a uma insatisfação com os recursos disponíveis: este tópico continua problemático e interessante no que concerne à música lésbica e guei. Contudo, uma vez que na passagem deste século o orientalismo na música está representado sobretudo pelo minimalismo não-guei, não se deve imaginar qualquer elo essencialista. Curiosamente, a Etnomusicologia tem-se mostrado ainda mais nervosa do que a musicologia histórica com as categorias de comportamento sexual manifestas na música. Considerando-se que a própria sexualidade é uma invenção moderna, uma longa história da homossexualidade na música é uma impossibilidade. Mas há espaço para explorar-se como as relações sexuais ou eróticas com o mesmo sexo são vistas em épocas e lugares diferentes e como a experiência social de estar comprometido com elas pode afetar a elocução musical: “tratar-se-á de história escrita do ponto de vista dos interesses gueis contemporâneos” (Halperin 1990: 29), fazendo perguntas jamais feitas durante o longo caso de amor da musicologia com o fato macho. Um exemplo seria a colocação das efusões líricas de Hildegard de Bingen no contexto da erotização medieval do corpo, centrada (no caso dela) no desejo pelo mesmo sexo. Salientando “quão insistentemente ‘queer’ a cristandade medieval pode ser”, Holsinger (1993: 120) sugere que “em vez de procurar gueis e lésbicas ‘reais’ na Idade Média, por que não tentar desenrustir a própria devoção medieval?” Voltando-se para o órgano, ele explora escritos que constantemente representam a prática polifônica em termos corpóreos como “cópula” (copula) e em termos relacionais como o produto de seus cantores masculinos. Esta retórica, ele sugere, não só explica a constante ligação entre sodomia e polifonia na tradição puritana, mas revela, no próprio âmago do órgano, o caráter queer, representado também em alguns versos homoeróticos de seu compositor principal, Leoninus (Holsinger 2001, capítulo 4). Ironicamente, portanto, a polifonia e a harmonia, que, mais que qualquer outra característica, diferenciam a música ocidental da música de outras culturas, estiveram desde o início conectadas ao desejo pelo mesmo sexo, e a “música culta” originalmente caiu em descrédito por conta duma associação muito semelhante àquela que, no século XX, ela tanto tem tentado evitar.
Esta escultura do século XIV representando um Cristo mais velho com o jovem São João ilustra o que Boswell chama de “a tradição de amizade apaixonada, comum entre o clero monástico da Idade Média”.
Parecem existir hoje bem poucas indicações acerca de como a freqüente acusação de sodomia contra os músicos do final do período medieval e início do moderno deva inserir-se numa noção da música que eles produziram. Não se sabe se compositores como Nicolas Gombert, Dominique Phinot, Tiburzio Massaino, Johann Rosenmüller e Jean-Baptiste Lully partilharam mais que a vergonha de seus desejos sexuais; não se sabe sequer se tal vergonha afetou suas composições. Os quatro primeiros indubitavelmente sofreram, Gombert cumprindo uma pena de três anos de trabalhos nas galés, Phinot sendo executado (seu corpo foi incinerado), Massaino exilado e Rosenmüller encarcerado com os estudantes envolvidos. Um cônego em Loreto, Luigi Fontino, foi decapitado em 1570 por sodomia com um menino cantor (Sherr 1991); e já se sugeriu que o primeiro livro de motetos de Gombert (1539) possa ter sido coletado como uma apologia em vista da obtenção dum perdão (Lewis 1994: 333–67). Lully, pelo contrário, fez fortuna e fundou uma tradição operística, aparentemente incólume aos ataques contra les sodomites na corte, os quais, no caso dele, culminaram na remoção de casa do pajem Brunet, ao qual se suspeitava que sodomizasse. Além disso, uma vez que o libretista Campistron era membro do círculo sodomita da corte, os dois últimos trabalhos cênicos de Lully, Acis et Galatée (1686) e Achille et Polyxène (1687), podem representar a mais antiga “colaboração guei” de que se tenha notícia.
Se o caso de Lully está bem documentado, particularmente em comentários irreverentes da época, a recente especulação sobre Zelenka — “um homossexual triste, insano, cuja música, em sua maior parte, é também triste e insana” (R. Morrison, The Times, 17 de junho de 1998) — parece provir exclusivamente duma análise estrutural e semântica das trio-sonatas do compositor tcheco (Reich 1987). Não restam indícios da sexualidade ou das práticas sexuais de Zelenka; ele permaneceu solteiro e foi uma figura solitária e despretensiosa, vista por alguns de seus contemporâneos como um católico reservado e mesmo intolerante. Uma coisa é inferir a participação dum músico na cultura do mesmo sexo e examinar, na literatura acadêmica e crítica, os traços ideológicos de homofobia resultantes da condição de “suspeito” (vide o ensaio de Thomas sobre Handel in Brett, Wood e Thomas orgs 1994); outra coisa é discernir internamente o desejo pelo mesmo sexo e depois usá-lo para fazer um compositor menos conhecido do período parecer desviante e excitante, e sua música, assim, mais marquetável. A capitosa mistura de catolicismo e homoerotismo, da qual esta nova imagem de Zelenka se vale, é mais característica do século XIX, como o mostram o movimento decadente e figuras fundamentais como J.-K. Huysmans, Walter Pater e Oscar Wilde (vide Hanson 1997), do que do início do século XVIII. Muito diferente é o caso do crescente número de exames de obras em busca de traços culturais inequivocamente inscritos no contexto social circundante, ou o de interpretações críticas baseadas na identidade enriquecidas com um senso de história da cultura. Por exemplo, trabalhos sobre as comunidades de freiras e as várias compositoras da Itália têm sugerido questões acerca de como o erotismo religioso do início da era moderna poderia refletir uma erótica destas vozes suprimidas e têm levado a interpretações lésbicas do trabalho das várias religiosas que exibem uma devoção extravagante pela Virgem Maria. Trabalhos recentes (de Cusick) sobre Francesca Caccini mostram também como uma abordagem feminista e especificamente lésbica pode estimular e iluminar a discussão de questões históricas em torno da música e do patriarcado. Além disso, em vista das várias inflexões da lenda de Orfeu, leu-se como significante o fato que no Orfeo de Monteverdi-Striggio o cantor perde sua amante só para ascender aos céus nos braços doutro homem. Quer Handel tenha dormido com outros homens ou não, as revelações sobre os círculos em que transitava — e a forma exata como seus biógrafos modernos articulam sua aflição quanto à possibilidade de que o tenha feito — fazem do ensaio de Thomas uma contribuição salutar aos estudos sobre Handel. O homem castrado, figura central de toda a ópera séria do tempo de Handel, não só complicou as questões de gênero e sexualidade como também encarnou a ameaça representada pela própria música: estas “Serêas Italianas” são comparadas pelo autor anônimo de Satan’s Harvest Home (1749) à “Musica Chromatica” da Grécia antiga e às “Mulheres Cantoras e Eunuchos da Asia”, por influência dos quais, parece, os antigos romanos “bem perderam o Espirito de Virilidade e com elle seu Imperio”. A Itália era “a Mãi e Ama da Sodomia”, onde “nenhum Cardeal ou Sacerdote de Reputação deixa de ter seu Ganymedes” (pp 51 e 56). No norte da Alemanha não se precisou dum castrato italiano para soar o alarme antiefeminado: simples minuetos em sinfonias pareciam a J. A. Hiller “manchas de beleza na face dum homem: eles dão à música uma aparência afetada e enfraquecem a impressão viril causada pelos [...] movimentos sérios” (Head 1995).
Um discurso guei e lésbico sobre a música quererá sem dúvida fazer ainda mais no sentido da exumação daqueles músicos identificados com o desejo pelo mesmo sexo. Mas há questões igualmente importantes a serem tratadas. Chamou-se a atenção para a homofobia na erudição musical tradicional. Quer se trate do horror à perspectiva de um Handel ou Schubert desviante, quer se trate da premissa que a sexualidade faz de Ravel, digamos, ou Britten a vítima “[d]aquela engenhosidade fatalmente sem propósito que é um sintoma de decadência” (Grove, 6a ed., v. 15, p. 617), quer se trate da invenção duma “persona artística” (segundo o New Criticism literário) para esvaziar a relação entre a vida de um artista lésbico ou guei e seu trabalho, quer se trate do recente movimento para importar da crítica literária a teoria da “angústia da influência” de Harold Bloom, com sua pressuposição de que as relações masculinas são invariavelmente férteis em contendas e não em amor (Whitesell 1994–95), um protesto opositor ou contextualizante necessita registrar-se, freqüentemente repetidas vezes. Necessita-se seguir procedimentos alternativos que não deixem a homossexualidade sem registro no disfarce do segredo público como mera decadência ou gosto pela elaboração. Inevitavelmente, parte da atenção recairá em questões de colaboração artística (ex., entre Virgil Thomson e Gertrude Stein ou entre Britten e Pears) e patrocínio (pelo salão e círculo parisienses da Princesa de Polignac, por exemplo, incluindo a lendária Nadia Boulanger, e, na música norte-americana, à roda de Bernstein, Copland, Menotti e Barber) e até sobre o efeito, em compositores identificados com a heterossexualidade, de ser liberado por um círculo composto principalmente de homossexuais e sua cultura, como Stravinsky pelo grupo Mir iskusstva (“Mundo da Arte”) à volta de Diaghilev, ou de sua música tornar-se o centro dum culto homossexual, como parece ter acontecido com a de Wagner na Alemanha.
O maior desafio para uma abordagem lésbica e guei é sem dúvida o cânon alemão de música erudita e seus satélites. Compositores como Handel e Schubert e até o feminilizado Chopin ainda são tidos como entidades estáveis, e estudos sobre eles continuam a assumir o parâmetro padrão de orientação sexual, até que se descubram documentos comparáveis ao escancaro intempestivo da porta de Winckelmann por Casanova enquanto o distinto estudioso clássico submetia o Amor Grego à prova prática no seu apartamento em Roma. Todavia, a literatura sobre estes compositores solteiros revela um embaraço ou uma evasão constante, corroborando o ponto duma homofobia inveterada na erudição musical. Além disso, uma vez que nunca se pode presumir a ortodoxia sexual, especialmente entre músicos, a parada contínua de heroísmo e masculinidade no repertório que vai de Beethoven a Strauss e sua representação na crítica e na pesquisa começam a parecer-se mais e mais com um ardil para desviar a atenção de uma bichice endêmica tão rigidamente reprimida que até mesmo sugeri-la é um erro imperdoável de gosto e de juízo (como nos casos de Beethoven, Schumann e Brahms). [55] Estudos mais matizados das circunstâncias de todos estes compositores podem ligá-los a modelos de amor ou desejo pelo mesmo sexo que se discerniram entre as figuras literárias da era da sensibilidade e do Romantismo. Que estes modelos não tenham sempre ou inevitavelmente incluído atos sexuais, em nada diminui sua intensidade ou importância. A recepção de suas músicas de um ponto de vista lésbico ou guei (ex., Cusick 1994b, Brett 1994, Wood 2000) deverá ampliar o alcance da crítica em toda a extensão do âmbito histórico, fornecer novos esclarecimentos quanto aos sentidos que as pessoas atribuem à música com a qual se identificam e ajudar a abrir caminho para novos debates sobre a força da música de vários tipos na vida das pessoas.
Finalmente, fechando o círculo no discurso sexológico com o qual o artigo se abriu, defrontamo-nos com a figura de Pyotr Ill’yich Tchaikovsky (1840–93), o primeiro e ainda o mais célebre “homossexual” na música do ocidente. Já em 1908 o chamavam o único “rematado uranista” a ter atingido “a mais alta eminência na arte” (Carpenter 1908: 111). Outros candidatos poderiam ter-se encontrado: o compatriota Modest Musorgsky (1839–81), por exemplo, ou o amigo Camille Saint-Saëns (1835–1921); mas um era um símbolo do nacionalismo (e portanto da diferença) e o outro nenhuma grande ameaça à hegemonia alemã (além do que, opunha-se firmemente à novidade homosexuel em favor do tradicional rótulo pédéraste). Tchaikovsky era inigualável no atingir um nível germânico de técnica e domínio formal, ultrapassando até os célebres compositores alemães em popularidade entre o público de concertos. Seu desvio manifesto permitiu que críticos a tal propensos conservassem os sinfonistas alemães impolutos e imaculados. Considerando-se algumas das críticas que têm ligado os supostos sentimentalismo, morbidez e falta de valores formais de Tchaikovsky a sua sexualidade, é digno de nota que sua música de concerto tenha-se inicialmente ouvido como “livre da efeminação medonha da maioria das obras modernas” (Bernard Shaw), como “impessoal” e contendo “vislumbres da mão do forte” (Ernest Newman, vide Brown 1999). Quando caiu a ficha quanto ao casamento fracassado do compositor e outros indicadores óbvios de sua condição fornecidos pelo irmão Modest numa biografia monumental, disponível na tradução condensada de Newmarch em 1905, o insulto da crítica, oriundo duma conexão direta entre a obra e a vida incaracterística do dogma ultramodernista, constitui um caso claro de intolerância institucionalizada; as ofensas foram de “igualzinho a uma colegial” e “verdadeiramente patológico” a “temos de servir de público para todas as suas chagas?”, e os perpetradores não eram obscuros, mas críticos como Gerald Abraham, Martin Cooper, James Huneker e Edward Lockspeiser (Brown, ibid.).
Ao final do século, Tchaikovsky continuava sendo a égua madrinha de atitudes para com a homossexualidade na música. Em romances, peças, filmes e outras representações na cultura dominante, o homossexual sempre morre, e é significativo que uma acalorada controvérsia tenha-se desenvolvido em torno da morte de Tchaikovsky. Devotou-se toda uma douta monografia ao tema (Poznansky 1996). O boato e o mexerico, dos quais os homossexuais temos tido de depender para construir nossa história, são visíveis em toda esta saga, que inclui suicídio por ordem do Tsar Alexandre III, suicídio por vontade própria, para evitar um escândalo homossexual, suicídio por sugestão do irmão guei, Modest, e, mais recentemente, suicídio por ordem de alguns antigos colegas, mortalmente preocupados com a honra da velha escola. Tampouco é claro qual versão, se o relato “oficial” do tifo na biografia de Modest ou um dos boatos, é a mais homofóbica. O mito do homossexual torturado e mórbido acabando com a própria vida infame é um tipo de estereótipo essencialista, mas a imagem guei positiva dum compositor homossexual da época não experimentando tensões quanto a sua homossexualidade é igualmente essencialista e irrealista. Ainda assim, a idéia mesma dum compositor bem sucedido, rico e mundialmente famoso, no auge de sua força criadora e produtividade, cometendo suicídio por ordem duns advogados lanfranhudos que conhecia da escola não faz muito sentido, nem como ficção pornográfica sadomasoquista. Porém os mitos e as projeções são tão abundantes que há poucas chances de a verdade revelar-se, mesmo para um biógrafo da família real britânica, um dos últimos a tratarem do assunto (Holden 1995).
Uma pespectiva lésbica ou guei da vida de Tchaikovsky indubitavelmente enfocaria seus aspectos vívidos e a diferença que ele fez para as áreas da música de concerto, da ópera e do balé. Por exemplo, a notável reinterpretação de Matthew Bourne do Lago dos cisnes (1995), na qual um corpo de baile masculino em penas justas substituiu os cisnes de tutu e a música de amor deu ensejo a um espetáculo empolgantemente homoerótico, atingiu, na opinião de alguns, uma autenticidade além de tudo o que a prática da interpretação historicamente informada imaginou. Um enfoque desta natureza consideraria também evidências da complicada estratificação de transgressão e aquiescência que resultou da construção da homossexualidade como um papel ou identidade, bem como pontos de resistência, por exemplo o balé inteiro que Tchaikovsky e Saint-Saëns dançaram um para o outro durante a visita do segundo a Moscou para um concerto em dezembro de 1875.
Quando jovens, ambos tinham não só sentido uma grande atração pelo balé, mas também tido certa habilidade natural para este tipo de dança. E assim, desejosos uma vez de exibir sua arte um para o outro, executaram no palco do salão do Conservatório todo um pequeno balé, Galatéia e Pigmalião. Saint-Saëns, com quarenta e dois anos, foi Galatéia e interpretou o papel da estátua com notável aplicação e Tchaikovsky, com trinta e cinco, encarregou-se da parte de Pigmalião. Nicolai Rubinstein [o pianista que interpretara as Variações para Dois Pianos do compositor francês com ele em Moscou] supriu a orquestra. (M. Tchaikovsky, tradução em Brown 1982).
Um par de bichas de meia-idade, uma em drag, arrasando no palco principal do Conservatório de Moscou? Não só isso, porque, segundo Modest, eles estavam exibindo sua arte um para o outro (que pliés, que jétés!). E não houve testemunhas a não ser o infeliz pianista. A execução epitomiza a agrura social dos músicos homossexuais durante todo o século seguinte: dois compositores, famosos na Europa inteira, ocupando um lugar central, o palco do Conservatório de Moscou, para encenar um drama do armário; o deleite privado não pode deixar de associar-se naquela ocasião, como em tantas outras ocasiões em tantas outras vidas, ao receio da revelação.
Estas tensões do espírito humano engendradas pelas forças da opressão e pelas contraforças que ele também engendra muito necessitam decodificar-se para que se compreenda melhor a experiência social e musical, tanto a de então como a de agora. Ao enfocar estes temas, uma perspectiva guei e lésbica dispõe dos meios para expandir todo o empreendimento crítico e histórico.
IX. Agradecimentos dos autores (retirei)
X. Agradecimentos, notas e bibliografia do tradutor (retirei)
XI. Discografia
Lesbian Concentrate: A Lesbianthology of Songs and Poems. Olivia Records (Los Angeles, 1977).
Red Hot + Blue: A Tribute to Cole Porter to Benefit AIDS Research and Relief. Chrysalis F2 21799 (Nova Iorque, 1990). Gravação em vídeo também disponível. Partitura arranjada por R. Day (Secaucus, NJ: Warner Chappell Music, 1991).
The AIDS Quilt Songbook. Harmonia Mundi USA, HMU 907602 (Los Angeles, 1994).
John GREYSON e Glenn SCHELLENBERG. Zero Patience: A Music about AIDS. Milan Entertainment 731383–35675–2 ([Nova Iorque?], 1994).
Gay American Composers. CRI, CD 721 (Nova Iorque, 1996).
And Trouble Came: Musical Responses to AIDS. CRI, CD 729 (Nova Iorque, 1996).
Gay American Composers. Volume 2. CRI, CD 750 (Nova Iorque, 1997).
Club Verboten. DCC Compact Classics DZS (4)–135 (Chatsworth, CA, 1997). Notas de R. Oliver.
Lesbian American Composers. CRI, CD 780 (Nova Iorque, 1998).
XII. Bibliografia
Estudos sobre compositores, com exceção daqueles citados no texto, foram omitidos. Material adicional encontra-se nas entradas sobre música da Encyclopedia of Lesbian and Gay Histories and Cultures, organizada por Bonnie Zimmerman e George E. Haggerty (Nova Iorque: Garland, 2000) e de The St. James Press Gay and Lesbian Almanac, organizado por Neil Schlager (Detroit: St. James Press, 1998) e, também, na “Current Bibliography” do boletim do Grupo de Estudos Gueis e Lésbicos da Sociedade Musicológica Americana (AMS), o GLSG Newsletter (1990–), que indexa revistas norte-americanas gueis, lésbicas e outras, como The Advocate, Curve, Lavender Lifestyles, Out, Rolling Stone e Village Voice.
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I. Introdução ao original inédito
(o texto trata da briga dos autores com o editor)
II. (Homos)Sexualidade e musicalidade
Conceber as categorias sexuais como arbitrárias ou contingentes à prática histórica ou social ainda é difícil para a maioria das pessoas em face de a sexualidade, como a musicalidade, ter sido tão completamente naturalizada durante o século XX e tão firmemente engastada num sentido individual do eu (Jagose 1996: 17–18). Todavia, embora mantendo a importância para a sociedade moderna das categorias mesmas da heterossexualidade e da homossexualidade e do processo de aculturação que as envolve, pensar historicamente acerca daquele “sentido do eu” tornou-se paradoxalmente o fundamento de boa parte dos trabalhos críticos lésbicos e gueis. Tal modo de pensar avaliza ainda a “teoria queer”, fenômeno intelectual baseado na recuperação do termo pejorativo queer e na regência do conhecimento lésbico e guei pelo conhecimento e as formas de pensar pós-modernos. Seguindo o raciocínio de Foucault, Halperin (1990: 24–25) localiza a dificuldade histórica: “homossexualidade pressupõe sexualidade, e a própria sexualidade [...] é uma invenção moderna” que “representa a apropriação do corpo humano e de suas zonas erógenas por um discurso ideológico”. Antes do começo do século XIX, atos sexuais desviantes como a sodomia — “aquela categoria absolutamente confusa” (Foucault 1978: 101) — não se particularizavam em gênero ou mesmo espécie; e alguns modos antigos de desejo pelo mesmo sexo, como o safismo e a pederastia, podem ser identificados em todo o decurso da cultura ocidental. Ao findar o século, porém, o modelo dominante da heterossexualidade formulou-se nos termos de sua oposição binária a uma identidade homossexual efetiva (embora ainda incoerente). Processo similar de formação de identidade é visível na música, onde o termo musicality substitui musicalness, mais antigo e mais vago, enquanto qualidade inerente atribuída à “natureza”, mas na realidade construída em instituições musicais de vários tipos, notadamente as educacionais, às voltas com o desenvolvimento do talento musical (vide Kingsbury 1988).
A ligação entre musicalidade e homossexualidade e uma forte suposição de que a profissão musical se compusesse sobretudo de homossexuais ingressaram no discurso público como resultado indireto da sexologia, trabalho científico fundamental para o entendimento moderno da sexualidade, iniciando-se na década de 1860 com a pesquisa pioneira de K. F. Ulrichs sobre o uranismo e desenvolvendo-se através de Richard von Krafft-Ebing, Magnus Hirschfeld, Albert Moll e outras autoridades alemãs. Na passagem do século, estudos ingleses em prol duma atitude liberal para com o “invertido” ou “uranista” fazem referência freqüente às fontes alemãs. “Quanto à música, [...] ela é certamente a arte que, em sua sutileza e suavidade — e talvez em certa tendência a permitir-se a emoção —, mais se aproxima da natureza uranista. Há mesmo poucos desta natureza que não tenham algum dom para a música” (Carpenter 1908: 111). Havelock Ellis deu tratamento ainda mais interessante ao tema (“exorbitou-se ao dizer que todos os músicos são invertidos”) e citou Oppenheimer no sentido de que “a disposição para a música é marcada por uma grande instabilidade emocional e esta instabilidade é uma disposição ao nervosismo”, para concluir que “o músico não se tornou nervoso em função da música, antes ele deve seu nervosismo (como também, acrescente-se, sua disposição à homossexualidade) à mesma disposição à qual deve sua aptidão musical” (Ellis 1915: 295).
Tais crenças, quando justapostas aos escândalos públicos em vários países da Europa e sobretudo aos inquéritos contra Oscar Wilde em 1895, culminando numa pena máxima de dois anos de trabalhos forçados pela contravenção de “ato obsceno com outro indivíduo do sexo masculino” (de acordo com a famosa emenda Labouchère ao Criminal Law Amendment Act de 1885), não fizeram senão exacerbar um clima no qual nem a presença de homossexuais na música nem suas contribuições a esta podiam reconhecer-se, um clima no qual a experiência da opressão sexual que determina as vidas de lésbicas e gueis não podia conectar-se à musicalidade. Em virtude destes antecedentes, proscreveu-se qualquer referência à sexualidade proibida e ilegal em suas associações com a música. “Você não mencionou isto”, explicou Virgil Thomson aos noventa e um anos de idade a seu biógrafo, oferecendo como justificativa final um “é claro que todo o mundo sabia do caso Oscar Wilde” (Tommasini 1997: 69). A arte da música, a profissão musical e a musicologia do século XX foram todas moldadas pelo conhecimento e pelo medo da homossexualidade. A necessidade de separar a música da homossexualidade impulsionou a convicção crucial de que a música transcenda a vida comum e seja autônoma em relação aos efeitos e à expressão sociais. Contribuiu ainda para a resistência à investigação crítica sobre a política — especialmente a sexual — da música e questões relacionadas à diversidade sexual, como o gênero, a classe, a etnicidade e a raça, a crença religiosa, e o poder.
Por outro lado, o caráter inespecífico da linguagem musical e a doutrina de sua autonomia em relação às questões sociais levaram a uma situação especial, a música tendo desempenhado — e desempenhando ainda — um papel importante como válvula de escape e como reguladora no mecanismo do “armário”, mais que um símbolo da natureza oculta de muitas vidas de lésbicas e gueis, provavelmente o atributo mais importante da homossexualidade do século XX, mais determinante e universal na cultura do ocidente que os próprios atos sexuais. Nas palavras do autor guei Wayne Koestenbaum (1993: 189–90), “historicamente, definiu-se a música como mistério e miasma, o implícito ao invés do explícito, e, assim, nela nos temos escondido: na música podemos assumir-nos sem nos assumir, revelar sem dizer palavra”. O privilégio de expressar livremente o desejo e outros sentimentos na música, uma tábua de salvação para aqueles cujas emoções básicas são invalidadas, parece ter levado também a uma anuência concomitante e tácita em preservar o status quo. Embora maciçamente povoados de lésbicas e gueis, os vários ramos da música têm tardado em demonstrar qualquer oposição patente à ordem heteronormativa das coisas (Brett in Brett, Wood e Thomas orgs 1994: 16–18). A maioria dos homossexuais interiorizou a opressão. “Oscar Wilde queixou-se na prisão de ter sido desencaminhado pela ‘erotomania’ e por um apetite sexual extravagante; [...] Sir Roger Casement, o patriota irlandês, pensou que sua homossexualidade fosse uma doença terrível da qual devesse curar-se; e Goldsworthy Lowes Dickinson, um humanista liberal famoso pelo racionalismo, encarou a sua como um infortúnio: ‘sou qual um inválido’” (Weeks 1981: 105). Muitos músicos homossexuais combinaram esta interiorização da opressão com alguma forma de protesto, ainda que inarticulada. Os vários mecanismos empregados para este fim são, às vezes, de difícil decifração e a musicologia ainda tem pouca experiência com sua criptografia, mas pode-se argumentar que estejam sempre presentes. A “sublimação conspícua” (Kramer 1995: 203) de Ravel; o alheamento ultramodernista de Maxwell Davies; a auto-supressão de Strayhorn; os códigos ocultos nas óperas e memórias de Smyth, apesar da erótica exultante de sua música de Sufrágio (Wood in Solie org. 1993, Wood 1995); a recusa de Mary Garden ao papel de Oktavian no Cavaleiro da rosa devido a suas implicações lésbicas; o radicalismo social de Blitzstein e Tippett; a excentricidade de Vladimir Horowitz e os desmentidos estridentes de Peggy Glanville-Hicks; o pacifismo de Britten e seu discurso homoerótico disfarçado em tratamento musical da literatura canônica; o camp musical de Poulenc por um lado e sua religiosidade por outro; as alusões para entendedores nas canções de Cole Porter e Noël Coward; a fixação de Landowska no cravo antediluviano como veículo de seu virtuosismo; a fuga de Henze do serialismo e da Alemanha; o cultivo duma voz “safônica” por Kathleen Ferrier e várias outras cantoras (Wood in Brett, Wood e Thomas orgs 1994); a audácia e o desespero de cantoras de blues como Ma Rainey, Bessie Smith e Billie Holiday; a desmistificação por Dent de Beethoven e de outros preceitos estabelecidos; o envolvimento de Szymanowski com o dionisíaco (e seu romance homoerótico em dois volumes, Ephebos); a adesão inicial de Copland ao erotismo (representado pelo orientalismo ou pela “negritude”) e a subseqüente erradicação de elementos corporais ou eróticos em favor dum estilo “puro e absoluto”, conquistado através do que Metzer (1997) chama de “uma campanha composicional da terra arrasada”; a crítica subversiva de Virgil Thomson e sua colaboração com Gertrude Stein; as vozes “andarilhas” de Partch; o disfarce vocal “vaqueiro solitário” realçado por falsete de Elton John e a representação musical do cantor no funeral de Diana, a Pária Real; a dupla adesão de Cage ao ruído e ao silêncio na música; o gamelão de Harrison e sua defesa do esperanto; a sentimentalidade de Menotti; o cultivo da “escuta profunda” comunitária por Pauline Oliveros e seu afeiçoamento ao acordeão; a espetaculosidade exagerada de Bernstein; e até a fachada mandarinesca de Boulez e as faces agressivamente inexpressivas dos Pet Shop Boys: tudo isto — e ainda outros aspectos da arte e da auto-apresentação destes homens e mulheres — pode ser lido como sinais tanto duma acomodação ao fato onipresente do enruste como duma subversão do mesmo. Objetar-se-á que em muitos casos seria possível achar-se um equivalente “hétero”. Mas uma lista como esta, à qual se poderiam acrescentar os nomes de Reynaldo Hahn, Roger Quilter, John Ireland, Charles T. Griffes, Eugene Goosens, Cole Porter, Dimitri Mitropoulos, Henry Cowell, Noël Coward, Colin McPhee, Wolfgang Fortner, Samuel Barber, Paul Bowles, David Diamond, Ben Weber, Daniel Pinkham, Karel Goeyvaerts, Jean Barraqué, Stephen Sondheim, Sylvano Bussotti, Conrad Susa, David del Tredici, John Corigliano, Charles Wuorinen, Konrad Boehmer, Thomas Pasatieri e muitos outros, não apenas mostra quão considerável tem sido a presença homossexual na música ocidental do século XX, mas induz também às questões de como e por que, na era pós-freudiana, um elemento básico da subjetividade possa ter sido tão pouco examinado em relação à música, ou por que esta relação deva ter sido tão obsessivamente negada — até por uma figura como Ned Rorem, que fez farto alarde de sua homossexualidade em memórias e diários. O fato de pessoas homossexuais representarem posições estilísticas e ideológicas diferentes e às vezes opostas, independentemente do ramo da profissão musical a que se dediquem, depõe contra uma “sensibilidade homossexual” unificada na música e contra qualquer relação simples entre identidade sexual e expressão musical. Ele não corrobora a opinião que não haja conexão entre ambas.
Habilitando a estranha dissociação entre homossexualidade e música, apesar de ambas terem estado tão nitidamente entremeadas por todo um século, está o mecanismo descrito como o “segredo público”. Sua função “é não tanto ocultar o conhecimento quanto ocultar o conhecimento do conhecimento” (Miller 1988: 206). Seu efeito é reforçar as oposições binárias (público/privado, dentro/fora, heterossexualidade/homossexualidade) e consignar a homossexualidade à esfera privada, sempre no limiar da visibilidade e, portanto, sempre sob vigilância enquanto alternativa impensável. Na medida em que a música, arte da performance, deve ocupar a esfera pública com, por assim dizer, seus segredos todos em exibição, então aquilo que Miller chama duma “recuperação fantasmática” de proporções enormes necessita montar-se para impedir que os segredos façam qualquer diferença. Até que ponto uma resistência possa ser efetiva em tal situação é matéria de considerável debate em teoria queer. Alguns inclinam-se ao que Alan Sinfield (1994: 21–27) chama de modelo da cilada, derivado de Althusser e de várias interpretações de Foucault, no qual a subversão apenas contribui para a contenção ou para uma noção pós-modernista geral do sujeito como completamente determinado pela ideologia e, portanto, sem capacidade de ação. Teorias desenvolvidas a partir de Gramsci, Raymond Williams e Zizek, por outro lado, oferecem mais possibilidades de resistência efetiva ao recusarem um sistema totalizante e reconhecerem que qualquer “ideologia dominante”, ela própria, está sempre atravessando diversas perturbações internas as quais a dissidência pode reverter a seu favor em situações históricas particulares. “Assumir-se” tem sido a ação política mais inegavelmente efetiva desde os anos setenta. Épocas anteriores requereram táticas diversas. Das mais eficazes, com certa força ainda, é o camp, um estilo diruptivo de humor que desafia cânones de gosto e, por sua própria natureza, elude qualquer definição estável. Outras soluções houve para quem recusasse este estilo performativo auto-sinalizante. Britten, por exemplo, provavelmente tenha feito melhor em explorar o segredo público, tirando partido de seu sucesso para garantir a circulação irrestrita das críticas vigorosas à família, às relações heterossexuais, à religião organizada, à autoridade patriarcal, ao militarismo e a tudo mais em suas obras.
O gênero, propositalmente ignorado nesta lista, adiciona camadas de complexidade à situação social dos homossexuais em quase todos os contextos musicais do ocidente, como o fazem a raça e a etnicidade e a classe. O homossexual masculino desfrutou duma situação particularmente ambígua na maior parte dos contextos ocidentais porque, especialmente se branco, dispôs da opção de exercer o privilégio e o poder masculinos, desde que não fosse publicamente exposto. Alguns adeptos deste expediente comportaram-se de formas particularmente opressivas ou ofensivas para com os outros, pois freqüentemente supercompensaram na elaboração de seu disfarce. Por outro lado, as lésbicas foram tratadas como minoria, devido não só a sua sexualidade, mas também, na maior parte dos contextos musicais, a um sistema hierárquico de gênero que constrangeu todas as mulheres a certos papéis, como os de diva, harpista e pianista, castigou-as por transgredirem-nos e colocou severos obstáculos em seus caminhos para outros, como os de compositora, regente, saxofonista e empresária.
Este sistema (de modo algum extinto) exacerbou-se extraordinariamente no contexto das salas de concerto e recital com a ênfase da era romântica na obra de arte duradoura de “música absoluta” e, por conseguinte, em seu criador, que tornou-se argüivelmente mais poderoso, apesar da reação anti-romântica, em função da guerra ultramodernista ao executante virtuosístico não-subserviente (vide “Mulheres na Música” e “Feminismo”). Homossexuais masculinos e femininos tiveram assim experiências muito distintas em diversos universos musicais, mas a base de seu interesse comum é a codificação e a regulamentação dos papéis de gênero segundo posicionamentos e identidades sexuais compatíveis. O aquinhoamento do homossexual masculino com uma posição feminina — a única que a ideologia dominante conceder-lhe-á enquanto “homem falho” — espelha-se, ainda que inexatamente, no escárnio a uma lésbica desafiadora ou criativa cujos trabalhos são constantemente rotulados de “viris”, “masculinos” e “antinaturais”, ou “carentes do charme feminino que se poderia esperar duma compositora”, como o demonstram respostas críticas às músicas de Ethel Smyth e Rosalind Ellicott no final do século (Kertesz 1995, Fuller 1994). Que críticas similares se tenham endereçado àquele ícone da respeitabilidade feminil, a senhora H. H. A. Beach, quando escrevesse uma missa ou sinfonia vigorosas (o compositor George Chadwick chamou-a “um dos nossos”), mostra bem as formas conexas e interpostas da ginofobia (medo de mulheres) e da homofobia (medo de homossexuais), como no “protesto masculino” de Charles Ives (Solomon 1987, Tick in Solie org. 1993, Kramer 1995: 183–88).
Ives espelha a masculinidade ameaçada de modo geral, tendendo a ver todos os músicos e suas atividades, quaisquer que sejam seus gêneros ou sexualidades, como femininos e a valorizá-los (ou desvalorizá-los) correspondentemente. Uma vez que todos na música partilham em algum grau a pecha do efeminado ou feminizado, poderosas forças institucionais tiveram de mobilizar-se para neutralizar esta imagem, especialmente com a entrada da música nas universidades em grande escala após a Segunda Guerra Mundial. A ampla adoção duma técnica neo-serialista, o desenvolvimento de formas arcanas de análise musical, a separação entre uma arte erudita e qualquer forma de expressão cultural popular e a equiparação da erudição musical com a investigação científica são todos sinais dum discurso heteronormativo masculinista altamente racional dominante na música, um discurso assaz desafortunada mas adequadamente caracterizado pela palavra “disciplina”.
III. A música e o movimento de lésbicas e gueis
Na esteira do movimento pelos direitos civis dos anos cinqüenta, que começou a mudar a situação dos afro-americanos nos Estados Unidos, surgiram vários contradiscursos na Nova Esquerda, entre os quais um revigorado movimento feminista pelos direitos da mulher. Um movimento militante de lésbicas e gueis, fermentando em ambas as costas dos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial, foi catalizado em 1969 pelo motim de Stonewall, assim chamado em alusão ao bar guei de Nova Iorque cujos clientes, em sua maioria operários e transformistas [17] (alguns porto-riquenhos e negros), enfrentaram organizadamente a polícia, que realizava uma batida de rotina no estabelecimento. O movimento inspirou-se na luta das minorias raciais oprimidas, concebeu suas próprias táticas (o zap) [18] e vinculou sua teoria ao movimento de liberação sexual e às novas teorias feministas da opressão. O conflito e a posterior acomodação entre ativistas lésbicas e feministas hétero afloraram no final dos anos setenta em função duma Emenda de Igualdade de Direitos à constituição dos Estados Unidos e no seio da Organização Nacional em Prol das Mulheres (NOW), bem como no início dos anos oitenta em debates sobre a identidade lésbica, os silêncios e as práticas das mulheres, o aborto, a pornografia e o estupro. Textos decisivos na área são “Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence” de Adrienne Rich e “Thinking Sex: Notes for a Radical Theory of the Politics of Sexuality” de Gayle S. Rubin (ambos em Abelove, Barale e Halperin orgs 1993). Instaurou-se entre os vários contradiscursos o consenso que, se uma revolução sexual não se incorporasse a uma revolução política, não poderia haver transformação real da sociedade e das relações sociais. Construíram-se ainda alianças que levaram não só à inclusão de questões lésbicas, gueis, bissexuais, transgênero e transexuais numa designação genérica, mas também, um pouco depois, ao envolvimento das minorias sexuais nas políticas de raça e classe.
O ulterior alastramento global do movimento complementou-se com iniciativas de erudição humanística, consistindo (como no feminismo) tanto numa vertente histórica, destinada a revelar os “ocultados da história”, como numa vertente teórica, comprometida com as questões pertinentes de identidade e subjetividade sexuais e suas relações com a sociedade capitalista, embora com freqüência ambas as vertentes se entremetessem, especialmente em questões controvertidas de diferença nas práticas e categorias sexuais dos homens gueis, das mulheres lésbicas e das pessoas bissexuais, intersexuais e transgênero, dentro de cada um dos grupos e entre um grupo e outro, tanto interculturalmente como em momentos históricos específicos. Esta iniciativa de pesquisa acabou levando a uma situação na qual, de acordo com a panorâmica de Domna C. Stanton (1992: 1–46), a sexualidade moderna é tanto “a atividade humana mais saturada de sentido” (Eve Sedgwick) quanto “um sinal, um símbolo ou uma reflexão de quase tudo em nossa cultura” (Stephen Jay Gould) e, ainda, “o nome que se pode dar a um construto histórico” (Michel Foucault) de relações sociais e sexuais cujos conteúdos e sentidos estão em constante mudança e fluxo.
Desde o início, enxergou-se a identidade homossexual como contingente: “nossa homossexualidade é parte crucial de nossa identidade, não por nada de intrínseco àquela, mas porque a opressão sexual assim o quis” (Altman 1971: 230, 1993: 240). Dúvidas quanto à identidade persistiram, porém, por várias razões: as categorias de identidade eram consideradas por muitos como instrumentos da ordem homofóbica e heterossexista à qual desejavam opor-se; elas tendiam a delir “hifenizações” de identidades, no momento mesmo em que a dominação branca do movimento tornava-se alvo de ataques; e elas foram desalinhadas pela emergência do sujeito descentrado, dividido, do pensamento pós-moderno.
Assim, a ênfase deslocou-se da identidade para a representação. Pode-se ter uma idéia disso através da auto-apresentação de Morrisey como “um profeta do quarto gênero”, num trocadilho com o “terceiro gênero” da sexologia do século XIX e, ao mesmo tempo, numa recusa a ser determinado por ela (Hubbs 1996). Tentando estabelecer a autodeterminação no sujeito feminista, Sue-Ellen Case sugeriu que a interpretação de papéis na cultura de bar lésbica operária poderia reabilitar-se como um “sujeito sapatilha-sapatão combinado” (rememorativo do “j/e” de Monique Wittig, mas “substituindo a barra lacaniana por um bar de lésbicas”) que seduz o sistema de signos com artifício e camp ao invés de interiorizar os tormentos da ideologia dominante (Case in Abelove, Barale e Halperin orgs 1993: 294–306, para uma aplicação musical vide Peraino 1992). A música, especialmente a popular, com suas táticas lúdicas, provocantes ou diruptivas em torno da representação tanto vocal como visual do sexo e do gênero (vide Madonna, Prince ou Boy George), freqüentemente parece responder à idéia de Judith Butler destas características supostamente naturais como elocuções “performativas” (isto é, como atos de fala), às quais os sujeitos se submetem numa repetição forçada como parte da admissão à língua e à sociedade. Butler propõe a notável inversão segundo a qual “se um regime de sexualidade nos incumbe duma performance compulsória do sexo, então só pode ser através desta performance que o sistema binário do gênero e o sistema binário do sexo venham a ter qualquer inteligibilidade” (Butler in Abelove, Barale e Halperin orgs 1993: 307–20, para uma explicação musical vide Cusick in Barkin e Hamessley orgs 1998).
No estudo acadêmico da música, o garimpo das músicas lésbicas e gueis, a crítica de pressuposições heteronormativas em áreas como a teoria musical e uma exploração da música e da subjetividade também poderiam ter começado nos anos setenta. Mas a natureza hermética do discurso musicológico do pós-guerra e o policiamento da música, que levou muitos a aquiescerem ao status quo, impediram o processo, como impediram também a investigação feminista em musicologia e a aceitação de compositoras no repertório de concerto e na ópera. Este policiamento, às vezes manifesto, como na prisão de Henry Cowell (Hicks 1991), mas com mais freqüência silencioso e pérfido, é simbólico duma pressão mais geral, na maior parte das vezes não admitida, que se expressa, por exemplo, no recurso das mulheres ao trabalho fora do sistema. Às vezes, o policiamento foi mais silenciado que silencioso, como nos “expurgos de homossexuais”, que David Diamond afirma terem ocorrido durante os quarenta anos de Howard Hanson na direção da Eastman School of Music (Schwarz 1994). Normalmente — e mais avassaladoramente — o policiamento transformou-se em autopoliciamento. Vias de protesto, é claro, existiam ou podiam criar-se, como radicais de esquerda (Woody Guthrie, por exemplo) o demonstraram através dum renovado movimento de canções folclóricas nos anos sessenta. Durante os anos setenta, musicos lésbicos e gueis começaram a achar os meios de dar expressão musical a suas sexualidades de várias formas interessantes, freqüentemente através duma reinterpretação radical dum gênero ou duma instituição musical preexistente. A música de concerto e sua musicologia foram praticamente impermeáveis nesta fase, devido aos foros, às convenções e às instituições condutoras de sua execução, bem como à pressão ideológica asséptica do ultramodernismo. Até a ópera, com seu enorme séqüito de lésbicas e gueis (e carta branca ao ridículo), foi menos suscetível que o balé à subversão queer: La Gran Scena Opera Company (fundada em 1981) jamais se tornou tão bem sucedida quanto sua irmã mais velha, a companhia de balé virtuosístico de transformistas Les Ballets Trockaderos de Monte Carlo (fundada em 1974). Por outro lado, todo o universo da ópera (e, até certo ponto, o da comédia musical e outros gêneros de teatro musical) era há muito um palco onde gueis e lésbicas podíamos representar ou ver representada nossa presença e humanidade. Empresários, diretores, produtores, críticos, libretistas e compositores contribuíram para esta atmosfera, junto com cantores, personagens e papéis. “Onde mais”, pergunta Margaret Reynolds (in Blackmer e Smith orgs 1995: 133), “você pode ver duas mulheres fazendo amor em público?” Tais cópulas, acrescente-se, percorrem a gama que vai do principal da pantomima britânica das classes inferiores, de meia arrastão e pavoneamento amplo de quadris, ao aristocrático Oktavian dando a réplica macha ao fêmea da Marschallin numa alcova vienense fim-de-século, o que freqüentemente percebeu-se como — e provavelmente concebeu-se para abarcar — uma performance simbólica do desejo lésbico (Mary Garden recusou-se a “assumir-se” ao recusar o papel); e a probabilidade duma interpretação deste tipo cresceu quando o dogma da performance ultramoderna, antepondo a tessitura original à moderna suscetibilidade para o gênero, empurrou sopranos e mezzos de poderosas gargantas para os papéis de castrato. Cópulas femininas históricas sem travestimento podem, elas também, adquirir significação inédita em função da exposição a uma perspectiva marginal, como Dido e a Feiticeira na visão de Judith Peraino (in Blackmer e Smith orgs 1995) da ópera de Purcell. Dramas ou parábolas do enruste abundam: O rei Rogério de Szymanowski; The Bassarids de Henze; Albert Herring, Owen Wingrave e Morte em Veneza, de Britten. O Peter Grimes de Britten é uma poderosa alegoria à opressão homossexual (Brett 1977, 1983), numa linha já sugerida por óperas que exploram a opressão de mulheres, como a Katya Kabanova de Janácek e (particularmente) a Lady Macbeth de Mtsensk de Shostakovich. Personagens lésbicos e gueis “reais” são obviamente mais difíceis de se encontrar. Mel e Dov, o par inter-racial de The Knot Garden (1970) de Tippett, parecem ser os primeiros gueis assumidos da ópera; previsivelmente eles rompem, um deles retornando a um estilo heterossexual de vida. A Condessa Geschwitz, o único personagem heróico e verdadeiramente amante da Lulu de Berg, destaca-se como um exemplo resplendente duma músico-dramaturgia que consegue transcender o essencialismo e a estereotipia (vide Morris in Blackmer e Smith orgs 1995).
Anja Silja, ao centro, interpreta a Condessa Geschwitz na montagem da Lulu de Berg pela Ópera de Düsseldorf no ano 2000, foto de Eduard Straub.
Um fenômeno notável do período imediatamente após Stonewall foi o surgimento de cantoras-cancionistas, grupos musicais, coros, selos de gravação e companhias de produção lésbio-feministas ou “identificadas com a mulher” (Olivia e Redwood foram ambas fundadas em 1973). Apareceram também espaços como cafés para mulheres e festivais exclusivamente femininos com um público composto, em grande parte, de lésbicas: entre vinte festivais anuais em curso nos Estados Unidos, o maior é o Michigan Women’s Music Festival, fundado em 1975. Raramente irradiada ou televisionada, a “música de mulheres” foi um movimento de bases desde seus princípios nos álbuns Angry Atthis de Maxine Feldman, Stonewall Nation de Madeline Davis (ambos em 1971) e Lavender Jane Loves Women de Alix Dobkin (Women’s Wax Works, 1973), até seu crescimento e consumação no trabalho de artistas como Holly Near, Meg Christian e Cris Williamson, cujo álbum inicial, The Changer and the Changed (Olivia Records, 1975), foi descrito como “o álbum independente de maior vendagem de todos os tempos” (anúncio no All Music Guide de 1994, página 1039). Dando preferência aos instrumentos acústicos, esta música baseia-se em estilos de canção folclórica às vezes modulados pelo blues, pelo rock, pelo jazz, pelo reggae e até pela música clássica. Ao tratar abertamente do desejo e dos relacionamentos lésbicos e da crítica feminista ao patriarcado, à misoginia e à homofobia, a música de mulheres adquiriu importância como uma arena na qual uma comunidade lésbica pode forjar-se nos Estados Unidos.
Outro fenômeno do período foi o início de grupos musicais e coros especificamente lésbicos/gueis. Entre os mais antigos estavam a Victoria Woodhull All-Women’s Marching Band, de Nova Iorque (1973), cujo nome homenageava uma feminista e candidata presidencial do século XIX (e que não era um grupo exclusivamente lésbico, embora a canção tema fosse “The Dykes Go Marching In”), [24] e o Anna Crusis Women’s Choir, de Catherine Roma, na Philadelphia (1975), ainda uma das principais organizações para a execução da música nova de mulheres. O Gotham Male Chorus, fundado em 1977, passou mais tarde a incluir mulheres, transformando-se no Stonewall Chorale, o primeiro coro de lésbicas e gueis. Em 1978 Jon Sims fundou o San Francisco Gay Freedom Day Marching Band and Twirling Corps, que se tornou um conhecido ponto de convergência para as aspirações políticas da vasta comunidade de lésbicas e gueis daquela cidade; um Gay Men’s Chorus apareceu em seguida.
Conquanto várias destas iniciativas tenham começado como manifestações diversas de orgulho comunal, elas se desenvolveram pelo mundo como instituições e movimentos artísticos completos e duradouros. Os coros em particular medraram, fundando sua própria organização internacional, a Gay and Lesbian Association of Choruses (GALA), nos Gay Games de São Francisco em 1982. Eles atualmente ultrapassam em número os grupos musicais, que, no mesmo ano, fundaram uma associação nacional, a Lesbian and Gay Bands of America (LGBA). De modo particular, estas iniciativas contribuíram para a crítica queer das instituições musicais e da cultura autorizada ao misturar as músicas tradicionais, populares e cultas de todos os tipos num único concerto; e, através dum programa substancial de encomendas amparado por execuções e festivais freqüentes e platéias fiéis, estimularam a criatividade de compositores lésbicos e gueis, prestando apoio também a outras músicas contemporâneas significativas vistas como simpatizantes com o movimento. Em resposta a estes e outros estímulos, uma Sociedade de Compositores Gueis e Lésbicos fundou-se em São Francisco nos anos oitenta.
IV. O teatro musical, o jazz e a música popular
O teatro musical tem sido um lugar privilegiado de identificação e expressão gueis, provavelmente ultrapassando até a ópera neste aspecto. Os homens gueis têm não só tido grande afinidade com ele como também participado em todos os níveis de sua produção. Contam-se entre eles líderes da área como Cole Porter, Ivor Novello, Lorenz Hart, Noël Coward, Arthur Laurents, Leonard Bernstein e Stephen Sondheim. Mas se o sonho de todo o jovem guei sensível era tomar de assalto a Broadway ou o West End, as temáticas reais do teatro musical eram tão heterossexistas quanto as de qualquer outra forma de representação da idade pré-Stonewall. Ainda assim, acharam-se maneiras de introduzir mensagens cifradas ou nem tanto, como “You’re a Queer One, Julie Jordan” (Carousel, 1945), para uma audiência entendida ao mesmo tempo que se permanecia dentro dos limites convencionais da narrativa. Estas mensagens podiam veicular-se pelo título, como em Gay’s the Word, o último trabalho de Novello (1950); pela letra, como em “Farming” de Porter (vide Bronski 1984: 113) ou “Mad about the Boy” de Coward (em Words and Music, 1933), esta com referências crípticas a A. E. Housman e a Greta Garbo; pelos personagens e a trama, como na Maria “buliçosa” da Noviça rebelde (Wolf 1996); e por intérpretes como Mary Martin, uma lésbica travestida no papel de Peter Pan (Wolf 1997). Há também uma longa tradição de apropriação do material de musicais para uso em todo e qualquer contexto guei imaginável. Com a articulação da identidade guei e lésbica nos anos setenta, começaram a aparecer os musicais com temas ou personagens gueis, muitos deles sucessos comerciais do teatrão. Se Cabaret (Masteroff/Kander/Ebb, 1966) tanto espetacularizou quanto mascarou a homossexualidade e Applause (Comden/Green/Strauss/Adams, 1970) apresentou-a como uma patologia, A Chorus Line (Hamlisch/Kirkwood/Dante/Kleban, 1975), de Michael Bennett, sentimentalizou-a de modo tipicamente liberal. A gaiola das loucas (Fierstein/Herman, 1983) retrata afetuosamente um casal guei no qual um dos membros é um transformista e O beijo da mulher aranha (McNally/Kander/Ebb, 1992) adaptou o vigoroso romance de Manuel Puig sobre a crescente ligação entre dois prisioneiros, um homossexual e um heterossexual. O teatro musical chegou a lidar com as crises do HIV e da AIDS, notadamente em Falsettoland (1990), a parte final da trilogia de William Finn, e também em Rent (1996), de Jonathan Larson, baseada na Bohème de Puccini.
A relação mais limitada do jazz com a homossexualidade se pode delinear através de duas carreiras. Billy (Dorothy) Lee Tipton, pianista de jazz, realizou uma performance de gênero como uma transformista despercebida, mas suas improvisações impecáveis, seu dom para a mímica, seus casamentos com o mesmo sexo e seus filhos adotivos podem ter tido mais a ver com a busca do sucesso numa música dominada por homens e em seus espaços do que com a busca do orgasmo num smoking e pênis de borracha [29] e servem para mostrar que a diferença está no olho de quem vê (Middlebrook 1998). Billy Strayhorn, o compositor dum dos títulos mais famosos da história do jazz, “Take the A Train”, e de vários outros, a quem muitos associam a seu mentor, Duke Ellington, parece ter voluntariamente aceito um anonimato factual e a ocultação de seu vasto talento sob a proteção compreensiva e afetuosa de Ellington (Hajdu 1996: 79–80) para ser abertamente guei. A lenda queer vê no jazz (como no heavy metal) e em seu público a própria encarnação da heterossexualidade, mas John Gill (1995) explora esta meia-verdade e critica atitudes para com músicos de jazz gueis ou bissexuais como Sun Ra, Cecil Taylor e Gary Burton de maneira a abrir a discussão.
A longa tradição de imitadores de homens e mulheres que sempre cantaram em seus shows, diferentemente das sincronizações labiais de transformistas da era tecnológica, está intimamente ligada à presença e representação queer na cultura popular. A famosa imitadora de homens assumidamente lésbica Gladys Bentley, que atraiu ricos e famosos para seus shows no Harlem e introduziu o scat-singing, as paródias improvisadas lascivas de canções populares e as letras lésbicas explícitas em seus shows, representa um extremo glorioso do entreguerras. Sua voz forte, arrebatada, alça-se às vezes ao que soa como um falsete masculino, irrompendo no que Emma Calvé chamou de “quarta voz” para marcar o seu “terceiro sexo”. Pelo menos nos Estados Unidos, o transformismo e (em menor grau) a imitação de homens por mulheres carregaram o estigma da liminaridade de gênero que também marcou a homossexualidade, levando-os a serem banidos em vários lugares (ex., Los Angeles) durante os repressivos anos trinta. Por outro lado, o transformismo britânico, sobrevivendo até a era da televisão através de artistas como Benny Hill, indica a que ponto tais shows podem contribuir para institucionalizar a homofobia através do ridículo, ao invés da incitação ativa ao ódio. As imitações e a música popular não escaparam à força do enruste e do “contrato” que músicos eruditos foram obrigados a assinar. Até Julian Eltinge, talvez o mais célebre representador de mulheres da primeira metade do século (com uma bela voz de contralto), foi a extremos para esconder sua homossexualidade; na verdade, vários astros pop têm demonstrado extraordinária relutância com a revelação de sua orientação sexual (Rodger 1998).
E todavia Ma Rainey e Bessie Smith puderam gravar certo número de canções declaradamente lésbicas nos anos vinte e performers lésbicos e gueis tornar-se populares na “febre de frescura” da era da lei seca nova-iorquina (Chauncey 1994). Noël Coward e Cole Porter pouco se importaram com esconder seu interesse no desejo pelo mesmo sexo atrás da insinuação sexual tingida de camp, a qual funciona, no contexto do teatro da metade do século, como um código, a ser decifrado pelos entendedores homossexuais e passar impercebido ou despercebido pelos outros. Mais tarde, o rock and roll incluiu a homossexualidade entre seus efeitos de contracultura através de artistas bandeirosos como Richard Penniman (“Little Richard”) e canções como seu sucesso de 1956, “Tutti Frutti”, ou até o “Jailhouse Rock” (1957) de Elvis Presley, com a famosa referência ao homoerotismo atrás das grades. Grupos posteriores como o Doors (Jim Morrison cantando “I’m a Backdoor Man” em 1968) e os Rolling Stones (cujo notório “Cocksucker Blues” de 1970 a Decca se recusou a lançar) mantiveram esta tradição. Associado quase que exclusivamente a George Harrison e aos Beatles, o “raga-rock” foi de fato iniciado pelo cantor e compositor principal dos Kinks,Ray Davies, com uma canção de influência indiana sobre sua própria sexualidade, “See My Friends” (1965); ele confirma a conexão freqüentemente observada entre o exotismo ou o orientalismo e a cultura homossexual ocidental de todos os tipos (Bellman 1998). Mais alguns passos levariam à “Walk on the Wild Side” (1972) de Lou Reed, com seu tributo à turma nova-iorquina de Andy Warhol, já refletida no trabalho do influente grupo Velvet Underground; à imorredoura canção de amor guei de Elton John, “Daniel”; a “The Killing of Georgie” (1976) de Rod Stewart, o primeiro sucesso na lista das quarenta mais a tratar de gueis de modo inequívoco; e ao memorativo “Glad to be Gay” (1977) de Tom Robinson. Este período conheceu ainda certo número de cantoras independentes (e até rebeldes). Janis Joplin, cujas relações mais importantes foram com mulheres e que parecia tão sem pudor do fato quanto do resto de sua animada vida, possuía uma intensidade que poderia ter fundado todo um movimento, não fosse sua morte prematura em 1970. Dusty Springfield, a arrebatada cantora de soul britânica que foi um ícone lésbico, sobreviveu ao declínio de sua carreira nos anos setenta e consolidou seu público guei ao gravar mais tarde com os Pet Shop Boys.
Nos anos oitenta a grande indústria musical parecia responder ao crescente conservadorismo da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos enfiando mais artistas e músicas no armário. Por exemplo, David Bowie e outros astros do glam-rock, que haviam respondido ao balanço-pros-dois-lados dos anos setenta, deixaram de alardear sua ambivalência sexual ou de pretender serem gueis e artistas gueis na grande mídia se resguardaram e continuaram criptografando suas canções. Alguns grupos masculinos britânicos com vários gueis ou uma maioria deles — Soft Cell, Frankie Goes to Hollywood, Erasure, Pet Shop Boys — mantiveram uma discrição de fachada. Mesmo os defletores de gênero Boy George e o Culture Club continuaram com evasivas (como a observação de Boy George sobre preferir uma boa xícara de chá ao sexo) muito depois de quase todos terem cessado de especular a seu respeito. Morrissey, como vimos, teorizou esta evasividade. Jimmy Somerville e seu grupo Bronski Beat foram uma exceção notável, interpretando canções assumidas duma forma assumida enquanto galgavam as paradas de sucesso. O duo assumidamente guei Romanovsky e Phillips tornou-se amplamente conhecido e ultrapassou o folk de São Francisco, onde começara, com o segundo álbum, Trouble in Paradise (1986). Surpreendentemente, o melancólico cantor de baladas Johnny Mathis, há muito um ídolo de jovens gueis emotivos, assumiu-se publicamente em 1982 sem grande estardalhaço.
V. A música e a crise da AIDS e do HIV
A crescente crise em torno da AIDS e da infecção HIV (a partir de cerca de 1981), crise esta que, por ter atingido inicialmente homossexuais masculinos e usuários de drogas intravenosas nas sociedades ocidentais, recebeu a princípio escassa atenção dos governos, terminou por estimular o ativismo durante os anos Reagan/Bush-Thatcher. As comunidades artísticas, afetadas de modo particularmente duro por esta pandemia, foram afetadas também por medidas repressivas como os ataques do Partido Republicano ao National Endowment for the Arts, nos Estados Unidos, e a Cláusula 28 do British Local Government Act (1988), que proibiu aos governos locais o financiamento ou a “promoção intencional” da homossexualidade e às escolas públicas seu ensino como “pretensa relação familiar”. O sinal verde para a era possivelmente tenha sido a opinião majoritária da Suprema Corte dos Estados Unidos no notório caso Bowers versus Hardwick de 1986, que manteve as leis contra a sodomia da Georgia e considerou “frívola” a reivindicação dum direito de adultos anuentes entregarem-se privadamente a atos com o mesmo sexo (vide Sedgwick 1990: 6–7 e 74–82 para uma análise cultural do caso). A resultante onda de politização das artes gerou um senso de comunidade na música, manifesto nos numerosos eventos beneficentes e homenagens relacionados à AIDS do final dos anos oitenta e início dos noventa: por exemplo, o gigantesco Live Aids no Wembley Stadium e o posterior tributo a Freddie Mercury, uma das várias vítimas na música popular; o sucesso de Dionne Warwick e Elton John, “That’s What Friends Are For”, em 1985; concertos promovidos por organizações de música clássica; e uma série de obras comemorativas. Entre estas, a Sinfonia Número Um, de John Corigliano (1989), e um AIDS Quilt Songbook coletivo, em desenvolvimento (primeira execução no Alice Tully Hall, de Nova Iorque, em junho de 1992), alusivo ao projeto NAMES (uma obra de arte coletiva internacional com mais de quarenta e três mil painéis homenageando individualmente os mortos da AIDS). Tanto um trabalho de protesto quanto uma homenagem, o projeto de três álbuns de Diamanda Galás, iniciado em São Francisco em 1984 com o título Masque of the Red Death (segundo Edgar Allen Poe), tornou-se finalmente a Plague Mass, em quatro movimentos (como foi gravada na Catedral do Divino São João, em Nova Iorque, em 1990). Deve-se mencionar ainda o cancionista e ativista da AIDS Michel Callen, membro do grupo a capela assumidamente guei Flirtations, que também lançou um álbum solo em 1988; Holly Johnson, do Frankie Goes to Hollywood, e Brian Grillo, do Extra Fancy, vieram ambos a público como abertamente gueis e soropositivos. Uma das primeiras vítimas da doença foi o artista alemão Klaus Nomi (falecido em seis de agosto de 1983), célebre por suas roupas bizarras, sua voz camaleônica e seu repertório musical invulgar; passando dum barítono chão de cabaré a um hirto falsete soprano e justapondo canções populares a árias operísticas, ele é famoso entre gueis, especialmente na Europa, por sua obsedante interpretação soprano de “Song of the Cold Genius”, do Rei Artur de Purcell.
Um traço do efeito da AIDS e do HIV na música foi a reutilização e reinterpretação de músicas anteriores associadas à consciência guei. Dois famosos sucessos disco do Village People, cujo criador, Jacques Morali, morreu de AIDS em 1991, voltaram alusivamente à baila: “Go West”, como um hino da AIDS pelos Pet Shop Boys, e “YMCA”, numa versão lúgubre, em estilo “música clássica”, para celo, voz e violão com clarinete obligato, no filme Longtime Companion (1990). Este arranjo hilariante, número de abertura dum concerto “Living with AIDS”, quase no final do filme, alcança vários significados — carpindo os mortos recentes (bem como a era da liberdade sexual e sua música) e incitando à sobrevivência através do humor e da ironia gueis. O primeiro CD da série “Red Hot” da Chrysalis, promovendo uma conscientização para a AIDS e beneficiando a pesquisa e a assistência a ela relacionadas, consistiu de versões cover de Cole Porter por vários artistas, num contexto que deu um sentido novo e pungente a canções como “I’ve Got You Under My Skin”. A gravação não só transformou as músicas de Porter em “canções gueis” pela primeira vez como também transmitiu ao ouvinte uma advertência quanto a deixar a música “reforçar um sentido geral de abstração social”. Embora lésbicas e gueis tenham concebido formas mais radicais de protesto social durante o mesmo período (ex., ACT-UP, Lesbian Avengers, OutRage! e Queer Nation), a adoção por pessoas liberais em geral duma questão de enorme influência sobre a comunidade queer marcou uma nítida mudança, e o apoio foi particularmente forte na música e em outras áreas artísticas.
VI. Acontecimentos dos anos noventa
Esta segunda onda de ação política coincidiu com mudanças na musicologia e na crítica ocasionadas pelo impacto tardio de modos de pensar interdisciplinares pós-estruturais. Um fenômeno chamado “nova musicologia” deu início a um processo de despojar a música absoluta da ideologia dos valores universais, da transcendência e da autonomia. A nova musicologia preconizou ainda uma prática crítica mais inclusiva e ao mesmo tempo mais firmemente localizada, que se recusou a deixar a categoria “música” não-marcada, à maneira tradicional, preferindo abarcar todos os fenômenos musicais e evitar comparações sem sentido entre gêneros distintos e práticas culturais distintas. Surgiu, por volta de 1990, um grupo de estudiosos e críticos lésbicos e gueis dispostos a trabalhar em questões lésbicas e gueis com um conjunto de procedimentos oriundos das críticas feminista e pós-estrutural. Como as organizações musicais lésbicas e gueis antes dele, este grupo também ignorou os limites tradicionais de gênero. A fundação do Grupo de Estudos Gueis e Lésbicos (GLSG) da Sociedade Musicológica Americana (AMS) em 1989 constituiu um reconhecimento do fenômeno. Um dos resultados foi mais destaque para os compositores lésbicos e gueis da era após a Segunda Guerra Mundial. Nenhuma lésbica na música, antes ou depois de Ethel Smyth, esteve tão publicamente comprometida com o ativismo feminista ou foi tão franca a respeito do desejo pelo mesmo sexo quanto Pauline Oliveros, que representou eloqüentemente seu próprio feminismo e comunidade lésbicos no universo da vanguarda norte-americana desde os anos sessenta. Lou Harrison, cuja fama vem crescendo, sempre foi positivo acerca de sua identidade guei. A morte de John Cage em 1992 abriu caminho para discussões há muito proteladas sobre sua união com Merce Cunningham e o radicalismo que não chegou ao ponto de declarar sua sexualidade. Importante, em meados dos anos noventa, foi a auto-identificação de onze compositores gueis — Chester Biscardi, Conrad Cummings, Chris DeBlasio, Robert Helps, William Hibberd, Lee Hoiby, Jerry Hunt, Robert Maggio, Ned Rorem, David del Tredici e Lou Harrison — numa gravação da Composers Recordings Inc. (CRI) intitulada “Gay American Composers” (1996), à qual seguiu-se, um ano mais tarde, um CD dedicado a uma generosa parcela duma geração masculina anterior — Barber, Blitzstein, Cage, Copland, Cowell, Harrison, Nikolais, Partch, Thomson e Ben Weber — e um terceiro promovendo compositoras lésbicas contemporâneas: Ruth E. Anderson, Eve Beglarian, Madelyn Byrne, Lori Freedman, Jennifer Higdon, Paula M. Kimper, Marilyn Lerner, Annea Lockwood, Linda Montano, Pauline Oliveros e Nurit Tilles. [39] Estes nomes de modo algum exaurem os fundos possíveis: a música de Linda Dusman, uma escritora e compositora lésbica, também poderia incluir-se aqui, bem como a de Laura Karpman, uma compositora cujo trabalho tem aparecido bastante na televisão; entre os compositores gueis, com forte presença no repertório dos coros, estão Byron Adams, Roger Bourland, David Conte e Lee Ganon. Várias das grandes companhias, como a BMG, a Teldec e a RCA, já haviam lançado gravações com títulos como Out Classics, [40] Sensual Classics e Classical Erotica, mas o que estas gravações exemplificaram foi sobretudo a incrível transformação do desejo guei ou lésbico em bem de consumo e sua exploração comercial. Musicistas e compositoras lésbicas, em particular, mantêm uma tradição não só de permanecerem fora das redes comerciais e institucionais como também também de resistirem a todos os modelos musicais, e o trabalho da compositora Sorrel Hays (que já gravara com o nome de Doris Hay, uma das principais intérpretes pianísticas de Henry Cowell) bem como o da performer e compositora Meredith Monk mantêm a força desta tradição, num tempo em que artistas lésbicas e gueis se vêem sob crescente pressão para aderirem à grande mídia.
A presença guei na música foi realçada durante os anos noventa por trabalhos como Of Rage and Remembrance, de John Corigliano, uma nova versão do terceiro movimento de sua Sinfonia Número Um, incorporando coro e solistas num texto de William Hoffman, o libretista de The Ghosts of Versailles, e, numa surpreendente aplicação da técnica aleatória, os nomes dos amigos pessoais que ambos perderam para a AIDS aos quais desejaram prestar homenagem. Harvey Milk, uma ópera de Stewart Wallace e Michael Korie sobre a vida e o tempo do ativista guei assassinado em 1978, não foi um sucesso de crítica. Mas a ópera guei e lésbica, como representada por duas estréias de sucesso em 1998, Thomas Chatterton de Matthias Pintscher (Dresden) e Patience and Sarah de Paula M. Kimper (Nova Iorque), tornou-se mais viável à medida que as companhias de ópera reconheceram a força do apoio lésbico e guei. Na música popular, os anos noventa assistiram também a uma revogação da abordagem cautelosa dos oitenta e à aparição na grande mídia de musicistas abertamente lésbicas advindas do espaço alternativo da música de mulheres. A extraordinária cantora-cancionista k. d. lang, que já havia invadido o campo heterossexista da música country com canções de forte identificação feminina e, em conseqüência, conquistado uma audiência lésbica, assumiu-se decisivamente em 1992 (vide Mockus in Brett, Wood e Thomas orgs 1994). O mesmo o fizeram Melissa Etheridge e as Indigo Girls, o que deu às lésbicas uma nítida representação na cultura popular, consolidando, por assim dizer, as representações sexualmente ambíguas de Tracy Chapman, Michelle Shocked e Madonna, bem como as imagens francamente lésbicas de Phranc e das Two Nice Girls. O aumento de grupos punk femininos e o fenômeno riot grrrl do Pacífico noroeste significaram que as lésbicas também podiam projetar uma imagem mais agressiva na música, como no trabalho dos grupos Tribe 8, Bikini Kill e Team Dresch (vide Coulombe in Barkin e Hamessley orgs 1998).
Até então ambivalente, Neil Tennant, dos Pet Shop Boys, assumiu-se em 1994; Michel Stipe, do R.E.M. (como bissexual), em 1995; e George Michael em 1998. O mesmo o fez (no Advocate de 12 de maio de 1998) Rob Halford, famoso por três décadas como líder do grupo heavy metal Judas Priest. Ele revelou quão simples lhe fora transferir os atavios às vezes apavorantes da cena leather guei para o palco metal sem perturbar uma audiência masculina primariamente hétero. Um público heavy-metal guei de entendedores, investido de supermasculinidade, havia, é claro, lido/ouvido homoerótica em vez de confraternização homossocial hétero o tempo todo (Walser 1993:108–36). Ao findar do século, numerosos cantores lésbicos e gueis e grupos de queercore tinham um público popular híbrido ou gravavam em selos da grande mídia, entre eles Ani diFranco, Echobelly, Janis Ian, Dan Martin (o fundador de OutMusic, uma organização de compositores e letristas lésbicos e gueis) e Michael Biello, Mouth Almighty, Me’Shell NdegéOcello, Pansy Division, Linda Perry, Placebo, Queer Conscience, Lucy Ray, Skin, Debbie Smith, Suede, Skunk Anansie e Sister George. A instituição dos Gay/Lesbian American Music Awards (GLAMA), em 1996, contribui bastante para consolidar e estimular um campo de inicitiavas já prolífico.
Assim, ao final dos anos noventa, uma forma de arte, uma disciplina acadêmica e uma mídia jornalística que haviam todas rechaçado veementemente a noção de que sexualidades desviantes tivessem qualquer coisa a ver consigo, apesar de evidências em contrário pulurarem, deparam-se repentinamente com uma pequena inundação de material “queer”, para usar o termo que, outrora uma forma de insulto, foi recuperado por volta de 1990 como uma designação genérica para a aliança de pessoas de todas as sexualidades inortodoxas com aqueles dispostos a associarem-se com elas.
VII. Divas e discotecas
Até aqui, a discussão seguiu a linha modernista tradicional de enfatizar a produção: o compositor e, talvez em menor grau, o intérprete. Uma maneira possivelmente melhor de definir “música lésbica e guei”, respondendo também ao argumento de serem a sexualidade e o gênero “inaudíveis nas próprias notas”, é inverter este modelo e, invocando as “políticas e epistemologias da localidade, do posicionamento e da situação” (Haraway 1991: 196), considerar tanto a audiência quanto os espaços específicos como criadores (ainda que apenas por contingência e momentaneamente) dum rótulo para a música. Em resposta à questão “o que é gay music”, formulada pela revista Out (novembro de 1996, pp 108–14) a certo número de músicos e profissionais da música, Peter Rauhofer afirmou: “tem tudo a ver com o efeito diva, uma atitude com a qual os gueis imediatamente se identificam”. Esta declaração não deixa de ser atraente enquanto uma generalização que perpassa as culturas homossexuais ocidentais do século XX, abarcando tanto lésbicas quanto gueis. Entre homens afluentes, o efeito diva tende a produzir uma devoção por sopranos (principalmente Joan Sutherland ou Maria Callas, esta o pivô da bem sucedida peça de Terrence McNally, A Traviata de Lisboa) e uma posição subjetiva conhecida como a da Opera Queen, amplamente discutida e teorizada (Bronski 1984, Koestenbaum 1993, Mordden 1984, Morris in Solie org. 1993, Robinson 1994). A devoção lésbica pode ser igualmente intensa, como o ilustra a história da jovem que cometeu suicídio após ter-lhe sido vetado o ingresso ao camarim de Mary Garden (Castle in Blackmer e Smith orgs 1995: 25–26). Ela difere por afixar-se a sopranos dramáticos, mezzo-sopranos ou contraltos, especialmente se suspeitos de “serem” (como Garden) ou se freqüentemente travestidos em papéis como Orfeu, Oktavian ou o Poeta de Ariadne auf Naxos. A tradição é anterior à Garden (George Sand era “louca” pela Malibran e tanto ela quanto George Eliot encontraram inspiração literária no canto de Pauline Viardot-Garcia) e incluiu entre suas divas célebres Olive Fremstad, a famosa soprano wagneriana máscula que é a heroína de The Song of the Lark de Willa Cather e Of Lena Geyer de Marcia Davenport (Castle in Blackmer e Smith orgs 1995, Wood in Brett, Wood e Thomas orgs 1994).
O efeito diva vigora também na música popular. Se cultura queer fosse religião, Judy Garland certamente estaria entre seus santos principais, seu céu “Somewhere over the Rainbow” (um reconfortante refúgio da opressão), O Mágico de Oz seria uma sagrada escritura e “amigo de Dorothy” o mantra de seus devotos. A filha de Garland, Liza Minelli, quase estabeleceu uma sucessão apostólica ao estrelar Cabaret, a adaptação musical de Berlin Stories, de Christopher Isherwood. Entre outras divas notáveis poderiam citar-se Marlene Dietrich, Mae West, Edith Piaf, Zarah Leander (a diva de voz profunda da tela alemã), Bette Midler (que começou sua carreira numa casa de banhos nova-iorquina), Barbra Streisand e Madonna. Se estes ídolos tiveram ou não relações amorosas com o mesmo sexo, é irrelevante: mais decisivas são certas características retratadas em seu canto, como a vulnerabilidade (ou o sofrimento real) misturada ao desafio, com as quais vários de seus fãs têm empatia. A qualidade de seu humor também é um ingrediente importante. Várias das cantoras mencionadas, notadamente k. d. lang, exploram o efeito diva, possivelmente sem chegarem a alcançar (ou desejar) o status duma Garden, duma Callas, duma Ferrier ou duma Garland.
O efeito diva também tem alguma influência sobre audiências exclusivamente hétero; quando isto ocorre, imbui-se freqüentemente nos elementos camp de excesso e estilo associados aos homossexuais. Liberace, por exemplo, atraiu uma audiência vasta (mas nem guei nem lésbica) pelo cultivo duma astuciosa mistura de sentimentalismo e travestismo em torno de seus candelabros e piano. O repertório incluía o camp musical e o indumentário; por exemplo, seu inspirado travestimento de “Night and Day” de Cole Porter na alta-costura da “Sonata ao luar” de Beethoven (para uma avaliação cultural, vide Kopelson 1996:139–85 e Garber 1992). Sua manipulação do “segredo público” foi mais extrema do que a da soma de qualquer número de outros músicos gueis menos escandalosos, mas também enrustidos. Os indicadores publicamente ostentados duma identidade oculta permitiram àqueles que o adoravam usar esta adoração (e o amor pela mãe, tanto o de Liberace quanto o deles) para apoiar seu próprio senso de diferença e superioridade.
Outra notável esfera de interesse e patrocínio queer tem sido a pista de dança. A disco music é denegrida em vários quadrantes, mas a vida dos dance clubs, dum extremo ao outro da Europa e dos Estados Unidos, transformou-se nos anos setenta com o advento de Gloria Gaynor, Patti Labelle, as Pointer Sisters, Sister Sledge, Donna Summer, Sylvester, o Village People, as Weather Girls e dúzias de outros cujas batidas rápidas e pesadas, sons imaginosamente sintetizados e sentimentos reconfortantes fizeram homens gueis e, às vezes, lésbicas girarem e celebrarem a “família” em espaços queer seguros, que estavam perto de realizar, para o momento corporificado e ocasionalmente transcendente, o que a ópera e O Mágico de Oz mal tinham podido começar a sugerir. Formas mais localizadas e especializadas, como a house music dos anos oitenta, ainda mais rápida e forte, e mais tarde a acid music e o techno, desenvolveram-se à medida que a disco se heterossexualizava e popularizava. Nos anos noventa, a dance music guei foi muito influenciada pela arte de RuPaul, provavelmente a drag mais bem sucedida da indústria do disco. Como o rock and roll antes delas, a disco e a house estavam profundamente impregnadas dos sons e estilos de interpretação negros, a diva afro-americana, de Grace Jones a RuPaul, sendo tão importante aqui quanto na ópera. Elas deslocaram momentaneamente as tensões raciais, criando uma arena idealizada para a performance da identidade queer (Currid 1995). Considerar mesmo a disco uma categoria de música é inadequado: disco é “também tipos de dança, clube, moda, filme etc; numa palavra, uma certa sensibilidade, manifesta em músicas, clubes etc, histórica e culturalmente específica, ideológica e esteticamente determinada — e sobre a qual vale a pena pensar” (Dyer 1992: 149). É o que há de mais próximo à gay music, se poderia crer; todavia, ao colocar a performatividade queer no tablado da “diva-inidade” negra, a disco conduz a um jogo complicado de identificações, como Currid (1995) mostra.
O foco numa audiência específica e em seu “conhecimento situado” pode também lançar por terra argumentos críticos tradicionais que buscam erradicar toda a identidade na música, salvo a nacionalidade. A recensão do New York Times (Paul Griffiths, 7 de julho de 1998) da ópera de Kimper e da gravação da música de compositoras lésbicas pela CRI, ambas já citadas, chega à conclusão “que a preferência sexual, como o sexo, é inaudível” e chama tal conclusão de “inevitável”. A resposta imediatamente se oferece: “inaudível a quem”? A crítica modernista, ansiosa por deter a proliferação de significados e manter as formas de autoridade e os cânones de gosto em seus devidos lugares, joga o ônus da prova sobre “a música em si”. Mas as notas não se deixam tão facilmente separar de seu contexto (de execução, palco, gênero e audiência, bem como alusão musical): se despojadas de todas as associações — uma impossibilidade —, não podem gerar sentido.
Nuns poucos casos, como nas justaposições extravagantes da música instrumental de Poulenc, uma sensibilidade homossexual é claramente audível, mas ainda assim só para quem tenha alguma compreensão da estética daquele fenômeno muito discutido mas dificilmente definido chamado “camp”. Além disso, o orientalismo ou o exotismo duma ampla gama das músicas dos séculos XIX e XX pode ser ouvido não meramente como aculturação decorativa, mas como um descontentamento audível com os costumes ocidentais prevalentes. Estratégias musicais mais complicadas, como o conjunto de interações tonais e motívicas que assinalam a tragédia da opressão interiorizada em Peter Grimes, podem revelar-se à medida que a crítica se envolva mais ampla e profundamente com estas questões. Tais indicadores, todavia, são possivelmente mais comuns na cultura homossexual (enrustida), na qual a música clássica está tão profundamente implicada, do que na música abertamente lésbica ou guei, como os tipos alternativos de música de mulheres ou a disco, já citadas. Aqui, o contexto exerce uma influência tão poderosa que chega a derrubar associações convencionais. Até a abertura da Quinta Sinfonia de Beethoven, aquele modelo quintessencial de masculinidade heróica, cumpriu seu destino guei quando, empetecada com uma batida pesada e outros apetrechos, estourou no cenário disco nos anos setenta como “Uma Quinta de Beethoven”.
“A identidade da música é a questão sagrada”, explica Philip Bohlman (referindo-se a McClary 1991): “Que as mulheres, os trabalhadores da classe operária, os gueis e as lésbicas, os negros, as comunidades religiosas ou étnicas ou quaisquer outros possam identificar a música de alguma outra maneira ou imaginar que ela incorpore espaços culturais completamente diferentes e diferenciados, torna-se uma blasfêmia contra ‘o que a MÚSICA é’. Imaginada desta maneira, ela pode não mais ser MÚSICA” (Bohlman 1993: 417).
Uma estratégia importante entre críticos lésbicos e gueis, portanto, é insistir na possibilidade e na importância tanto de recepções diferentes de todos os tipos de música, uma insistência capaz de minar qualquer autoridade ou objetividade que a crítica possa reivindicar para si, quanto da destruição do ímpeto essencializante ou minoritarizante de confinar a crítica da música lésbica e guei à análise do estilo. Numa declaração extremamente radical, bem no início da história do movimento (primeira conferência de Teoria Feminista e Música, em 1991), Suzanne Cusick revindicou e explorou uma relação lésbica especial com a própria música (Brett, Wood e Thomas orgs 1994). Chegando (da forma mais suave), por assim dizer, às “vias de fato”, este gesto preparou o terreno para boa parte do trabalho crítico subseqüente (para complicar ainda mais o quadro, nem todo ele escrito por críticos que se auto-identificam como lésbicos, gueis ou bissexuais) que recusa protocolos prévios num esforço para alcançar concepções imaginativas e variadas quanto a que tipos de fenômenos podem coexistir como “música lésbica e guei” — ou queer —, e como estes fenômenos podem relacionar-se com conjuntos inteiros de outras posições, inclusive a hegemônica.
VIII. Antropologia e História
Até aqui a discussão disse respeito ao século XX, à Europa, à América do Norte e a seus postos avançados e restringiu-se, em grande medida, a fenômenos musicais recentes. Pode-se argumentar que a “música lésbica e guei” esteja confinada a estas épocas e locais específicos e, ainda assim, necessite maior flexão para descrever o que, exatamente, estava acontecendo naqueles clubes da Alemanha ocidental ou para notar que o Front d’Alliberament Gai de Catalunya (FAGC), fundado em 1977, estava mais ligado à independência catalã e à sentida canção catalã do que à disco music norte-americana. Para além do “ocidente”, o dilema torna-se ainda mais claro. Nas músicas não-ocidentais, as ambigüidades e inversões de gênero e sexo, para não falar nas práticas sexuais com o mesmo sexo, encontradas em muitas culturas, com músicas diferentes e sexualidades diferentes, estimularam a imaginação do ocidente, que se sentiu atraído por elas e as fantasiou. As inversões simbólicas em torno do talèdhèk masculino travestido na canção e na dança balinesas; a performance transexual pelos espíritos-guia, ou halaa, entre os povos Temiar; o mahu havaiano de gênero indeterminado; ou o mapuche do sul dos Andes: tudo isto depõe a favor da advertência que “guei, lésbica, bissexual, homossexual, heterossexual [...] não manifestam senão uma visão fugidia e limitada das variações em gênero que estão começando a emergir da pesquisa intercultural” e “reduzem a complexidade do ser pessoa a meia dúzia de oposições arquitetadas por um discurso etnocêntrico” (Robertson 1992).
Algumas das músicas das culturas não-ocidentais tornaram-se matéria-prima para compositores homossexuais do ocidente caçando em terras proibidas, mas não se podem amalgamar ou sujeitar a uma categoria ocidental. Compositores homossexuais ou pederastas, de Saint-Saëns em diante, também foram particularmente suscetíveis às atrações do orientalismo devido talvez à projeção do sexo ilícito apontada na crítica de Said (1978), talvez, como Lou Harrison o sugeriu, a uma identificação com o Outro ou até (como no caso de Cage) a uma insatisfação com os recursos disponíveis: este tópico continua problemático e interessante no que concerne à música lésbica e guei. Contudo, uma vez que na passagem deste século o orientalismo na música está representado sobretudo pelo minimalismo não-guei, não se deve imaginar qualquer elo essencialista. Curiosamente, a Etnomusicologia tem-se mostrado ainda mais nervosa do que a musicologia histórica com as categorias de comportamento sexual manifestas na música. Considerando-se que a própria sexualidade é uma invenção moderna, uma longa história da homossexualidade na música é uma impossibilidade. Mas há espaço para explorar-se como as relações sexuais ou eróticas com o mesmo sexo são vistas em épocas e lugares diferentes e como a experiência social de estar comprometido com elas pode afetar a elocução musical: “tratar-se-á de história escrita do ponto de vista dos interesses gueis contemporâneos” (Halperin 1990: 29), fazendo perguntas jamais feitas durante o longo caso de amor da musicologia com o fato macho. Um exemplo seria a colocação das efusões líricas de Hildegard de Bingen no contexto da erotização medieval do corpo, centrada (no caso dela) no desejo pelo mesmo sexo. Salientando “quão insistentemente ‘queer’ a cristandade medieval pode ser”, Holsinger (1993: 120) sugere que “em vez de procurar gueis e lésbicas ‘reais’ na Idade Média, por que não tentar desenrustir a própria devoção medieval?” Voltando-se para o órgano, ele explora escritos que constantemente representam a prática polifônica em termos corpóreos como “cópula” (copula) e em termos relacionais como o produto de seus cantores masculinos. Esta retórica, ele sugere, não só explica a constante ligação entre sodomia e polifonia na tradição puritana, mas revela, no próprio âmago do órgano, o caráter queer, representado também em alguns versos homoeróticos de seu compositor principal, Leoninus (Holsinger 2001, capítulo 4). Ironicamente, portanto, a polifonia e a harmonia, que, mais que qualquer outra característica, diferenciam a música ocidental da música de outras culturas, estiveram desde o início conectadas ao desejo pelo mesmo sexo, e a “música culta” originalmente caiu em descrédito por conta duma associação muito semelhante àquela que, no século XX, ela tanto tem tentado evitar.
Esta escultura do século XIV representando um Cristo mais velho com o jovem São João ilustra o que Boswell chama de “a tradição de amizade apaixonada, comum entre o clero monástico da Idade Média”.
Parecem existir hoje bem poucas indicações acerca de como a freqüente acusação de sodomia contra os músicos do final do período medieval e início do moderno deva inserir-se numa noção da música que eles produziram. Não se sabe se compositores como Nicolas Gombert, Dominique Phinot, Tiburzio Massaino, Johann Rosenmüller e Jean-Baptiste Lully partilharam mais que a vergonha de seus desejos sexuais; não se sabe sequer se tal vergonha afetou suas composições. Os quatro primeiros indubitavelmente sofreram, Gombert cumprindo uma pena de três anos de trabalhos nas galés, Phinot sendo executado (seu corpo foi incinerado), Massaino exilado e Rosenmüller encarcerado com os estudantes envolvidos. Um cônego em Loreto, Luigi Fontino, foi decapitado em 1570 por sodomia com um menino cantor (Sherr 1991); e já se sugeriu que o primeiro livro de motetos de Gombert (1539) possa ter sido coletado como uma apologia em vista da obtenção dum perdão (Lewis 1994: 333–67). Lully, pelo contrário, fez fortuna e fundou uma tradição operística, aparentemente incólume aos ataques contra les sodomites na corte, os quais, no caso dele, culminaram na remoção de casa do pajem Brunet, ao qual se suspeitava que sodomizasse. Além disso, uma vez que o libretista Campistron era membro do círculo sodomita da corte, os dois últimos trabalhos cênicos de Lully, Acis et Galatée (1686) e Achille et Polyxène (1687), podem representar a mais antiga “colaboração guei” de que se tenha notícia.
Se o caso de Lully está bem documentado, particularmente em comentários irreverentes da época, a recente especulação sobre Zelenka — “um homossexual triste, insano, cuja música, em sua maior parte, é também triste e insana” (R. Morrison, The Times, 17 de junho de 1998) — parece provir exclusivamente duma análise estrutural e semântica das trio-sonatas do compositor tcheco (Reich 1987). Não restam indícios da sexualidade ou das práticas sexuais de Zelenka; ele permaneceu solteiro e foi uma figura solitária e despretensiosa, vista por alguns de seus contemporâneos como um católico reservado e mesmo intolerante. Uma coisa é inferir a participação dum músico na cultura do mesmo sexo e examinar, na literatura acadêmica e crítica, os traços ideológicos de homofobia resultantes da condição de “suspeito” (vide o ensaio de Thomas sobre Handel in Brett, Wood e Thomas orgs 1994); outra coisa é discernir internamente o desejo pelo mesmo sexo e depois usá-lo para fazer um compositor menos conhecido do período parecer desviante e excitante, e sua música, assim, mais marquetável. A capitosa mistura de catolicismo e homoerotismo, da qual esta nova imagem de Zelenka se vale, é mais característica do século XIX, como o mostram o movimento decadente e figuras fundamentais como J.-K. Huysmans, Walter Pater e Oscar Wilde (vide Hanson 1997), do que do início do século XVIII. Muito diferente é o caso do crescente número de exames de obras em busca de traços culturais inequivocamente inscritos no contexto social circundante, ou o de interpretações críticas baseadas na identidade enriquecidas com um senso de história da cultura. Por exemplo, trabalhos sobre as comunidades de freiras e as várias compositoras da Itália têm sugerido questões acerca de como o erotismo religioso do início da era moderna poderia refletir uma erótica destas vozes suprimidas e têm levado a interpretações lésbicas do trabalho das várias religiosas que exibem uma devoção extravagante pela Virgem Maria. Trabalhos recentes (de Cusick) sobre Francesca Caccini mostram também como uma abordagem feminista e especificamente lésbica pode estimular e iluminar a discussão de questões históricas em torno da música e do patriarcado. Além disso, em vista das várias inflexões da lenda de Orfeu, leu-se como significante o fato que no Orfeo de Monteverdi-Striggio o cantor perde sua amante só para ascender aos céus nos braços doutro homem. Quer Handel tenha dormido com outros homens ou não, as revelações sobre os círculos em que transitava — e a forma exata como seus biógrafos modernos articulam sua aflição quanto à possibilidade de que o tenha feito — fazem do ensaio de Thomas uma contribuição salutar aos estudos sobre Handel. O homem castrado, figura central de toda a ópera séria do tempo de Handel, não só complicou as questões de gênero e sexualidade como também encarnou a ameaça representada pela própria música: estas “Serêas Italianas” são comparadas pelo autor anônimo de Satan’s Harvest Home (1749) à “Musica Chromatica” da Grécia antiga e às “Mulheres Cantoras e Eunuchos da Asia”, por influência dos quais, parece, os antigos romanos “bem perderam o Espirito de Virilidade e com elle seu Imperio”. A Itália era “a Mãi e Ama da Sodomia”, onde “nenhum Cardeal ou Sacerdote de Reputação deixa de ter seu Ganymedes” (pp 51 e 56). No norte da Alemanha não se precisou dum castrato italiano para soar o alarme antiefeminado: simples minuetos em sinfonias pareciam a J. A. Hiller “manchas de beleza na face dum homem: eles dão à música uma aparência afetada e enfraquecem a impressão viril causada pelos [...] movimentos sérios” (Head 1995).
Um discurso guei e lésbico sobre a música quererá sem dúvida fazer ainda mais no sentido da exumação daqueles músicos identificados com o desejo pelo mesmo sexo. Mas há questões igualmente importantes a serem tratadas. Chamou-se a atenção para a homofobia na erudição musical tradicional. Quer se trate do horror à perspectiva de um Handel ou Schubert desviante, quer se trate da premissa que a sexualidade faz de Ravel, digamos, ou Britten a vítima “[d]aquela engenhosidade fatalmente sem propósito que é um sintoma de decadência” (Grove, 6a ed., v. 15, p. 617), quer se trate da invenção duma “persona artística” (segundo o New Criticism literário) para esvaziar a relação entre a vida de um artista lésbico ou guei e seu trabalho, quer se trate do recente movimento para importar da crítica literária a teoria da “angústia da influência” de Harold Bloom, com sua pressuposição de que as relações masculinas são invariavelmente férteis em contendas e não em amor (Whitesell 1994–95), um protesto opositor ou contextualizante necessita registrar-se, freqüentemente repetidas vezes. Necessita-se seguir procedimentos alternativos que não deixem a homossexualidade sem registro no disfarce do segredo público como mera decadência ou gosto pela elaboração. Inevitavelmente, parte da atenção recairá em questões de colaboração artística (ex., entre Virgil Thomson e Gertrude Stein ou entre Britten e Pears) e patrocínio (pelo salão e círculo parisienses da Princesa de Polignac, por exemplo, incluindo a lendária Nadia Boulanger, e, na música norte-americana, à roda de Bernstein, Copland, Menotti e Barber) e até sobre o efeito, em compositores identificados com a heterossexualidade, de ser liberado por um círculo composto principalmente de homossexuais e sua cultura, como Stravinsky pelo grupo Mir iskusstva (“Mundo da Arte”) à volta de Diaghilev, ou de sua música tornar-se o centro dum culto homossexual, como parece ter acontecido com a de Wagner na Alemanha.
O maior desafio para uma abordagem lésbica e guei é sem dúvida o cânon alemão de música erudita e seus satélites. Compositores como Handel e Schubert e até o feminilizado Chopin ainda são tidos como entidades estáveis, e estudos sobre eles continuam a assumir o parâmetro padrão de orientação sexual, até que se descubram documentos comparáveis ao escancaro intempestivo da porta de Winckelmann por Casanova enquanto o distinto estudioso clássico submetia o Amor Grego à prova prática no seu apartamento em Roma. Todavia, a literatura sobre estes compositores solteiros revela um embaraço ou uma evasão constante, corroborando o ponto duma homofobia inveterada na erudição musical. Além disso, uma vez que nunca se pode presumir a ortodoxia sexual, especialmente entre músicos, a parada contínua de heroísmo e masculinidade no repertório que vai de Beethoven a Strauss e sua representação na crítica e na pesquisa começam a parecer-se mais e mais com um ardil para desviar a atenção de uma bichice endêmica tão rigidamente reprimida que até mesmo sugeri-la é um erro imperdoável de gosto e de juízo (como nos casos de Beethoven, Schumann e Brahms). [55] Estudos mais matizados das circunstâncias de todos estes compositores podem ligá-los a modelos de amor ou desejo pelo mesmo sexo que se discerniram entre as figuras literárias da era da sensibilidade e do Romantismo. Que estes modelos não tenham sempre ou inevitavelmente incluído atos sexuais, em nada diminui sua intensidade ou importância. A recepção de suas músicas de um ponto de vista lésbico ou guei (ex., Cusick 1994b, Brett 1994, Wood 2000) deverá ampliar o alcance da crítica em toda a extensão do âmbito histórico, fornecer novos esclarecimentos quanto aos sentidos que as pessoas atribuem à música com a qual se identificam e ajudar a abrir caminho para novos debates sobre a força da música de vários tipos na vida das pessoas.
Finalmente, fechando o círculo no discurso sexológico com o qual o artigo se abriu, defrontamo-nos com a figura de Pyotr Ill’yich Tchaikovsky (1840–93), o primeiro e ainda o mais célebre “homossexual” na música do ocidente. Já em 1908 o chamavam o único “rematado uranista” a ter atingido “a mais alta eminência na arte” (Carpenter 1908: 111). Outros candidatos poderiam ter-se encontrado: o compatriota Modest Musorgsky (1839–81), por exemplo, ou o amigo Camille Saint-Saëns (1835–1921); mas um era um símbolo do nacionalismo (e portanto da diferença) e o outro nenhuma grande ameaça à hegemonia alemã (além do que, opunha-se firmemente à novidade homosexuel em favor do tradicional rótulo pédéraste). Tchaikovsky era inigualável no atingir um nível germânico de técnica e domínio formal, ultrapassando até os célebres compositores alemães em popularidade entre o público de concertos. Seu desvio manifesto permitiu que críticos a tal propensos conservassem os sinfonistas alemães impolutos e imaculados. Considerando-se algumas das críticas que têm ligado os supostos sentimentalismo, morbidez e falta de valores formais de Tchaikovsky a sua sexualidade, é digno de nota que sua música de concerto tenha-se inicialmente ouvido como “livre da efeminação medonha da maioria das obras modernas” (Bernard Shaw), como “impessoal” e contendo “vislumbres da mão do forte” (Ernest Newman, vide Brown 1999). Quando caiu a ficha quanto ao casamento fracassado do compositor e outros indicadores óbvios de sua condição fornecidos pelo irmão Modest numa biografia monumental, disponível na tradução condensada de Newmarch em 1905, o insulto da crítica, oriundo duma conexão direta entre a obra e a vida incaracterística do dogma ultramodernista, constitui um caso claro de intolerância institucionalizada; as ofensas foram de “igualzinho a uma colegial” e “verdadeiramente patológico” a “temos de servir de público para todas as suas chagas?”, e os perpetradores não eram obscuros, mas críticos como Gerald Abraham, Martin Cooper, James Huneker e Edward Lockspeiser (Brown, ibid.).
Ao final do século, Tchaikovsky continuava sendo a égua madrinha de atitudes para com a homossexualidade na música. Em romances, peças, filmes e outras representações na cultura dominante, o homossexual sempre morre, e é significativo que uma acalorada controvérsia tenha-se desenvolvido em torno da morte de Tchaikovsky. Devotou-se toda uma douta monografia ao tema (Poznansky 1996). O boato e o mexerico, dos quais os homossexuais temos tido de depender para construir nossa história, são visíveis em toda esta saga, que inclui suicídio por ordem do Tsar Alexandre III, suicídio por vontade própria, para evitar um escândalo homossexual, suicídio por sugestão do irmão guei, Modest, e, mais recentemente, suicídio por ordem de alguns antigos colegas, mortalmente preocupados com a honra da velha escola. Tampouco é claro qual versão, se o relato “oficial” do tifo na biografia de Modest ou um dos boatos, é a mais homofóbica. O mito do homossexual torturado e mórbido acabando com a própria vida infame é um tipo de estereótipo essencialista, mas a imagem guei positiva dum compositor homossexual da época não experimentando tensões quanto a sua homossexualidade é igualmente essencialista e irrealista. Ainda assim, a idéia mesma dum compositor bem sucedido, rico e mundialmente famoso, no auge de sua força criadora e produtividade, cometendo suicídio por ordem duns advogados lanfranhudos que conhecia da escola não faz muito sentido, nem como ficção pornográfica sadomasoquista. Porém os mitos e as projeções são tão abundantes que há poucas chances de a verdade revelar-se, mesmo para um biógrafo da família real britânica, um dos últimos a tratarem do assunto (Holden 1995).
Uma pespectiva lésbica ou guei da vida de Tchaikovsky indubitavelmente enfocaria seus aspectos vívidos e a diferença que ele fez para as áreas da música de concerto, da ópera e do balé. Por exemplo, a notável reinterpretação de Matthew Bourne do Lago dos cisnes (1995), na qual um corpo de baile masculino em penas justas substituiu os cisnes de tutu e a música de amor deu ensejo a um espetáculo empolgantemente homoerótico, atingiu, na opinião de alguns, uma autenticidade além de tudo o que a prática da interpretação historicamente informada imaginou. Um enfoque desta natureza consideraria também evidências da complicada estratificação de transgressão e aquiescência que resultou da construção da homossexualidade como um papel ou identidade, bem como pontos de resistência, por exemplo o balé inteiro que Tchaikovsky e Saint-Saëns dançaram um para o outro durante a visita do segundo a Moscou para um concerto em dezembro de 1875.
Quando jovens, ambos tinham não só sentido uma grande atração pelo balé, mas também tido certa habilidade natural para este tipo de dança. E assim, desejosos uma vez de exibir sua arte um para o outro, executaram no palco do salão do Conservatório todo um pequeno balé, Galatéia e Pigmalião. Saint-Saëns, com quarenta e dois anos, foi Galatéia e interpretou o papel da estátua com notável aplicação e Tchaikovsky, com trinta e cinco, encarregou-se da parte de Pigmalião. Nicolai Rubinstein [o pianista que interpretara as Variações para Dois Pianos do compositor francês com ele em Moscou] supriu a orquestra. (M. Tchaikovsky, tradução em Brown 1982).
Um par de bichas de meia-idade, uma em drag, arrasando no palco principal do Conservatório de Moscou? Não só isso, porque, segundo Modest, eles estavam exibindo sua arte um para o outro (que pliés, que jétés!). E não houve testemunhas a não ser o infeliz pianista. A execução epitomiza a agrura social dos músicos homossexuais durante todo o século seguinte: dois compositores, famosos na Europa inteira, ocupando um lugar central, o palco do Conservatório de Moscou, para encenar um drama do armário; o deleite privado não pode deixar de associar-se naquela ocasião, como em tantas outras ocasiões em tantas outras vidas, ao receio da revelação.
Estas tensões do espírito humano engendradas pelas forças da opressão e pelas contraforças que ele também engendra muito necessitam decodificar-se para que se compreenda melhor a experiência social e musical, tanto a de então como a de agora. Ao enfocar estes temas, uma perspectiva guei e lésbica dispõe dos meios para expandir todo o empreendimento crítico e histórico.
IX. Agradecimentos dos autores (retirei)
X. Agradecimentos, notas e bibliografia do tradutor (retirei)
XI. Discografia
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Red Hot + Blue: A Tribute to Cole Porter to Benefit AIDS Research and Relief. Chrysalis F2 21799 (Nova Iorque, 1990). Gravação em vídeo também disponível. Partitura arranjada por R. Day (Secaucus, NJ: Warner Chappell Music, 1991).
The AIDS Quilt Songbook. Harmonia Mundi USA, HMU 907602 (Los Angeles, 1994).
John GREYSON e Glenn SCHELLENBERG. Zero Patience: A Music about AIDS. Milan Entertainment 731383–35675–2 ([Nova Iorque?], 1994).
Gay American Composers. CRI, CD 721 (Nova Iorque, 1996).
And Trouble Came: Musical Responses to AIDS. CRI, CD 729 (Nova Iorque, 1996).
Gay American Composers. Volume 2. CRI, CD 750 (Nova Iorque, 1997).
Club Verboten. DCC Compact Classics DZS (4)–135 (Chatsworth, CA, 1997). Notas de R. Oliver.
Lesbian American Composers. CRI, CD 780 (Nova Iorque, 1998).
XII. Bibliografia
Estudos sobre compositores, com exceção daqueles citados no texto, foram omitidos. Material adicional encontra-se nas entradas sobre música da Encyclopedia of Lesbian and Gay Histories and Cultures, organizada por Bonnie Zimmerman e George E. Haggerty (Nova Iorque: Garland, 2000) e de The St. James Press Gay and Lesbian Almanac, organizado por Neil Schlager (Detroit: St. James Press, 1998) e, também, na “Current Bibliography” do boletim do Grupo de Estudos Gueis e Lésbicos da Sociedade Musicológica Americana (AMS), o GLSG Newsletter (1990–), que indexa revistas norte-americanas gueis, lésbicas e outras, como The Advocate, Curve, Lavender Lifestyles, Out, Rolling Stone e Village Voice.
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