A
revista Malagueta está publicando uma série de treze entrevistas que têm como bússola o artigo de Zadie Smith,
Fail Better, publicado no The Guardian. O link para o artigo está desativado, mas o mesmo tem tido repercussão em toda a mídia (veja em
http://serendip.brynmawr.edu/exchange/node/123 ou dê um google). O artigo ainda teve uma seqüela,
Read Better, também desativado.
Mas porque essas duas estão aqui? Por que são poetas e ambas estão na minha comunidade Um Poema por dia. Só isso.
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Mariana Ianelli e Cíntia MoscovichZadie Smith disse que “para os escritores, escrever bem não é simplesmente questão de habilidade mas, sim, de caráter”. E pergunta: “o que é preciso para escrever bem? Quais qualidades pessoais isso exige?” A visão de literatura é ponto central ou único?Mariana Ianelli: Escrever com o corpo todo, numa aposta vital, é algo que vai muito além da técnica, bem como da moral individual, e supõe uma abertura para o incalculável. Henry Miller disse uma vez que “os livros que lemos são determinados por aquilo que somos”. O mesmo se dá com os livros que escrevemos, no sentido de que tudo o que nos faz ser o que somos, habilidade, caráter, inteligência, coração, enfim, tudo isso comparece no ato da escrita e, no entanto, nada disso por si só é capaz de garantir um bom trabalho. Um grande livro, a meu ver, prescinde de justificar-se por esta ou aquela qualidade de um homem por trás do escritor, até porque, o que nele pode haver de melhor, em geral, escapa aos limites da sua própria individualidade. Sem dúvida cabe ao escritor responder às exigências da linguagem. Como diz Octavio Paz, “a moral do poeta é verbal: é lealdade à palavra”. Acontece que a escrita contempla esse organismo vivo que é a língua e sua participação na saúde ou na agonia da memória, da imaginação, da história, enfim, de toda uma cultura de uma civilização. Cabe, pois, ancorar a palavra na vida, essa matéria ao mesmo tempo tão volátil e tão nítida que dá à literatura o sangue de uma outra realidade incompatível com a ordem do senso comum. O engajamento no humano, o estar no mundo e ser com os outros são forças que abraçam a experiência literária e a tensionam, de modo que ser leal à palavra significa ainda lealdade àquilo que a palavra ela mesma não pode nomear senão por essa fresta onde acontece a poesia, na coragem de amar.
Cíntia Moscovich: Não posso dizer com certeza que escrever seja, de fato, “questão de caráter”. Mas, certamente, é questão de habilidade e como tal é tratado entre os escritores — sendo tal habilidade uma das muitas coisas cobiçadas por todos. No entanto, “escrever bem” é só uma parte do trabalho literário, e disso também se sabe sobejamente. Em verdade, verdade mesmo, “escrever bem”, no sentido do trabalho literário, é a junção de vários fatores. Ou de várias virtudes ou de várias características, nem ruins nem boas. O escritor sabe que para fazer seu trabalho precisa de paciência, longa, longuíssima, ainda que ardente. E de muita, muita, mas muita, humildade, no sentido de nunca se considerar auto-suficiente e imune ou acima de qualquer crítica ou sugestão. Paciência e humildade, por si, não formam um escritor, é claro. Porque, acima de tudo, e tocamos no miolo da questão, para escrever o indivíduo precisa ter um olhar oblíquo, quase cínico, sobre os fatos da vida. Escritor algum é inocente, embora a literatura esteja eivada de bons sentimentos e de bom-mocismo. Não conheço nenhum escritor que acredita em tudo o que vê e ouve, a incredulidade e a dúvida são os motores da literatura. O problema todo é transmitir ao texto esse humour (chamemos assim), traduzir em palavras o que é apenas uma sensação de deslocamento frente aos acontecimentos que rendem histórias. Aí entra a habilidade com a palavra, o conhecimento do vernáculo para encontrar a palavra justa, que caiba naquilo sugerido pela percepção. E, já que se fala em percepção, o escritor precisa muito e muito de ter boa memória. Não para lembrar nomes e datas, mas para reviver o que sentiu — e o que ele sente, muitas vezes, é uma espécie sadia de hiperestesia, um acúmulo de reações intensas frente a estímulos que, banalmente, talvez sugerissem muito pouco a menos avisados. Talvez seja isso. Mas é necessário muito mais. Porque, e talvez responda à segunda parte da pergunta, a literatura é sempre o mais importante da vida, o principal, o lugar para onde todas as experiências convergem. Em suma: o escritor é um maníaco. E isso talvez nem seja virtude.
Antes de saber escrever bem, é preciso saber por que se escreve? Por que você escreve: para ser lido, para ler ou pela pura necessidade da escrita, que talvez esteja além da expressão? Enquanto escreve, sua vontade maior é agradar ou se satisfazer?
MI: Por não saber, eu diria, é que se escreve. E é essa aposta de risco, esse enigma justamente o que move o escritor, que o seduz e o ensina mais sobre si mesmo do que ele pensava já saber ou ser capaz. Escreve-se pelo inesperado que abriga a linguagem, pelo desconhecido que abriga o outro, pelo aceno de um encontro. O livro, para que se mantenha vivo, vai à procura dos leitores, um a um. Não espero agradar nem me satisfazer escrevendo, mas aposto no encontro, e que ele seja vertiginoso, de uma felicidade intensa e, quem sabe, perturbadora.
CM: Não, não é preciso saber por que se escreve. Porque nunca se sabe ao certo porque se escreve e saber porque se escreve não faz a menor diferença. Posso responder que se escreve para ser lido, para ler e pela pura necessidade da escrita, porque nada disso é excludente em relação à própria literatura. O escritor escreve para ser amado (isso quem me disse, com essas palavras, foi o escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, que tem uma oficina de criação literária maravilhosa). Enquanto escrevo, preciso, a um só tempo, agradar meu leitor, seja quem for, e, claro, me satisfazer. E não sei bem porque escrevo. Só sei que é preciso.
Colocando-se apenas no papel de leitor de sua obra, existe a possibilidade de considerar qualquer trabalho seu um fracasso? Ao terminar de escrever um texto, você aceita e gosta do resultado unicamente porque é responsável por ele? Smith disse que “em algum lugar entre a superficialidade necessária do crítico e a desonestidade natural do escritor, a verdade com a qual julgamos o sucesso ou fracasso literário está perdida”. Como leitor e escritor, você concorda? Por que?MI: Não vejo como dissociar escrita, leitura e autocrítica quando trabalhamos. Tampouco entendo por que a superficialidade do crítico seria necessária. A disposição para o silêncio na poesia, por exemplo, pode decantar mentalmente muitos excessos antes que um verso seja escrito. Por outro lado, nem sempre o escritor é o melhor leitor de sua obra, ou o melhor crítico, daí porque, apesar do maior zelo, nenhum trabalho está completamente a salvo do fracasso. A princípio, dois tipos de leitura de uma obra me parecem fundamentais para evitar um falso juízo ou uma interpretação precipitada: a leitura da obra ela mesma, na sua unidade orgânica, sem ignorar sua inserção no tempo e no espaço da literatura; a leitura da obra como parte de um processo bem mais amplo e indiscernível de construção, cujo mapeamento depende de uma visão de conjunto dos caminhos que o escritor percorreu até desembocar em uma linguagem que lhe é particular. Quando penso no meu primeiro livro, Trajetória de antes, passados já oito anos, a imagem que me vem é a de uma fruta colhida antes do tempo, como o próprio título já previa. E, no entanto, foi esse mesmo livro, com todos os seus desacertos, que me permitiu ir adiante. Não se trata apenas de aceitar uma obra por responsabilidade, mas de assumir os desdobramentos de uma vivência que jamais abole o risco do erro, muito ao contrário, que ousa errar sem ser gratuita, sem recuar diante do desconhecido ou do difícil. O sucesso ou o fracasso de um livro, a meu ver, em grande parte envolve esse gesto de coragem, que nada tem a ver com desonestidade.
CM: Existe, sim, a possibilidade de considerar muito do que eu escrevo e volto a ler um fracasso. Já pensei que era fracasso quase tudo o que eu escrevi e publiquei. E só publiquei porque, em releituras e reescrituras sucessivas e em consultas a leitores que prezo, fui mudando de opinião, até gostar, me apaixonar e, passado esse estado de paixão, amar. Amar mais ou menos como se ama um amigão do peito, com o qual a gente pode contar. Só que amar o texto não é igual a amar gente: nas pessoas, a gente ama apesar dos defeitos. O texto que se escreve só pode ser amado se a gente identifica o erro e sabe como, na próxima vez, evitá-lo. Por ser responsável pelo meu texto é que nunca acho bom o resultado a que cheguei, mesmo sabendo que, ao menos em teoria, jamais repetirei os erros cometidos. Desejo profundamente que tudo o que eu escrevo me ultrapasse e sobreviva. Talvez eu não concorde com Zadie Smith. Eu sei, de fato sabido, que a “desonestidade natural” do escritor nunca se dá com seu próprio texto. O escritor pode até ser leviano lendo textos alheios, mas ele lê com seriedade, quase crueldade, o que ele mesmo escreveu. Muitos autores que conheço comprovam o que vou dizer a seguir: o sujeito que ama e perdoa os deslizes de seu próprio texto é um medíocre. Um boçal. A glória narcisista do autor, que existe, se dá em outro momento, que é o de ver seu livro em livrarias ou seu nome na imprensa. Quando as pessoas amam, enfim, o que o autor escreveu. Mesmo que se ame incondicionalmente o próprio texto, como disse antes, não se perdoa o que nele é ruim e supérfluo. A grande obra-prima sempre está por vir. Quem ama de imediato, quem se jacta, quem é seguro sobre o que faz, vive de onanismo.
Alguns autores sentem necessidade de justificar seus estilos literários, muito mais quando algum crítico questiona sua validez. Naturalmente, pode ser uma tentativa de defender o que foi escrito. Tais explicações são essencialmente verdadeiras sempre? Até que ponto o estilo pode ser justificado? Há limites ou a liberdade de criação é prioridade?MI: Não creio que um livro necessite justificar-se ou que um escritor tenha de sair em defesa do seu estilo. Quando não vêm para autopsiar ou encamisar uma obra, explicações podem dizer muitas coisas a seu respeito, nenhuma, porém, em que a obra deva se apoiar para suprir uma falta. Na minha opinião, só o poético responde suficientemente à poesia, na medida em que preserva, no seu modo singular de dizer, sua indeterminabilidade fundamental. Os limites da criação são os que a própria obra, dentro do processo criativo, impõe como responsabilidade ao escritor, e que existem não para constrangê-lo, mas para informar sua liberdade. O poeta tem da beleza o óvulo da forma, não as formas de aprisionar. Dos limites, o limite que a luz lhe dá.
CM: Não sei como responder. Nunca vi ninguém que eu respeite justificando estilo. Estilo, aliás, é coisa que nem se sabe direito o que é. Não que eu creia que, na defesa do próprio texto, o escritor seja sempre verdadeiro. O que, de fato, o escritor preza e defende é sua liberdade, um bem supremo. Não a liberdade de fazer besteiras, mas a de criar sem censuras, dentro de um sistema ético e moral próprio. Agora: quando o escritor tem que justificar seu texto, um dos dois, autor ou texto — ou ambos — é muito ruim. O texto tem de se manter de pé sozinho, sem bravatas ou xingamentos. À liberdade expressiva sempre corresponde a liberdade interpretativa, que é do outro. O escritor foi para a chuva, agüente se molhar. Se não suporta os fatos implicados no fazer literário, melhor que se dedique à agronomia.
A escritora inglesa considera a seguinte visão de TS Eliot limitada: “poesia não é uma expressão da personalidade, mas uma fuga dela”. E ela explica: “personalidade é muito mais do que detalhes autobiográficos, é o nosso próprio modo de processar o mundo, nossa maneira de ser, e não pode ser artificialmente retirado de nossas atividades: é nosso jeito de ser ativos”. Você acha que é preciso ter conhecimento e aproveitar um pouco dos dois lados na criação, ou apenas trabalhar com um deles é suficiente? A personalidade é um auxílio inevitável ao criar histórias e personagens, mas não é essencial que se saia dela para chamar esse processo realmente de criativo?
MI: Convém ampliar um pouco o foco da citação para compreender o que realmente diz T.S.Eliot no seu ensaio, pois quando ele fala em fugir da emoção, está se referindo à tarefa de trabalhá-la no nível poético, de servir-se dela como matéria-prima na criação de uma emoção nova, transfigurada, livre do âmbito exclusivamente pessoal da personalidade, ou seja, ir além do pessoal (e não simplesmente descartá-lo) empregando-o no aperfeiçoamento do trabalho literário, de modo que a obra seja fruto de uma combinação inesperada de “experiências e impressões”. A meu ver, essa despersonalização que propõe T.S. Eliot remete àquele formidável exercício de metamorfose que Elias Canetti reclama para a poesia moderna ao dizer, em um discurso intitulado O ofício do poeta, de 1976, que tanto mais um poeta abrirá suas “vias de acesso entre os homens” quanto mais ele for capaz de se transmudar em um outro, como Ulisses no palácio de Alcino, disfarçado de mendigo, narrando suas aventuras sem que os convivas saibam quem ele verdadeiramente é. Esse exercício camaleônico, digamos assim, não significa de modo algum uma artificialização do trabalho artístico, mas uma expansão do consciente para o indeterminado, uma abertura para o surpreendente, o desconhecido. O poeta faz que um outro surja e fale em seu lugar e esse outro não é apenas qualquer homem que ele, poeta, possa ser, mas também aquele outro que o poema procura para existir, ter um corpo e um rosto próprio, o rosto e o corpo de um leitor. Vejo nesse processo de metamorfose o coração da grande poesia.
CM: A literatura é a expressão de uma fuga às avessas da realidade. Isso é um jogo de palavras, claro. Mas a literatura não é a expressão da personalidade do autor. É preciso que o autor trabalhe com tudo o que tem à mão, sua própria personalidade, inclusive. Mas o autor precisa ser solidário com seus personagens, saber como eles são e se comportam, e não ficar reproduzindo a si mesmo. É bom que o autor saia de seu próprio umbigo durante a criação, embora mesmo essa saída, esta tentativa de evasão, se vá transformar nele, naquilo que faz dele um ser humano que é escritor. O importante é o processo e não o resultado a que se chega.
Os autores que, como Smith escreveu, fazem parte da geração pós-moderna foram criados para pensar que autenticidade é algo insignificante. O que faz um escritor ser autêntico hoje em dia? A recorrência ao clichê pode ser considerada parte de um possível fracasso? Por que?
MI: Na minha opinião, a autenticidade está associada não só a uma singularidade poética, mas sobretudo a um poder de anonimato que põe o escritor numa direção contrária à da espetacularização da sua persona. O convívio com o que alimenta e rodeia a literatura, sem ser propriamente literário, e sim de interesse humano numa dimensão mais profunda, seja de natureza mística, filosófica ou científica, também compõe o que há de mais específico e particular na voz de um escritor. Já o clichê é qualquer coisa esvaziada de sentido que adoece um texto, é a casca da palavra, a frase de efeito, o verso fatigado. O bom poeta, como já alertava Mário Faustino, deve vivificar a língua e o pensamento, não degenerá-los.
CM: Autencidade… Um escritor é autêntico quando cumpre o que ele mesmo espera dele, que é escrever. Mas com um mundo de possibilildades, com tantas pessoas e personagens no mundo, por que um escritor deve ser autêntico? Talvez estejamos falando em autores inovadores, singulares, o que é quase mesmo O clichê é, sim, o caminho do fracasso. O escritor não consegue fugir do lugar comum e reprisa fórmulas prontas. É uma frustração grande, muito grande, ter que apelar ao clichê.
No ensaio, a autora diz: “No mercado da ficção contemporânea, o escritor precisa entreter e ser reconhecível, menos que isso é visto como fracasso e rejeição dos leitores”. Que tipo de leitor você tem em mente quando escreve? O objetivo do escritor contemporâneo é apenas entreter quem lê seus livros? Por que?MI: Não penso no leitor em termos de mercado, nem acho que a figura do escritor tenha de ser reconhecível. Penso sim que a obra deve ter sua presença, sua marca peculiar, ser um país à espera de quem o habite. Não acredito que a relação entre o autor e sua obra ou que a intimidade entre a obra e cada um de seus leitores se submeta a qualquer tipo de lógica industrial. Acredito sim no leitor que tem um rosto, um nome, e que pode vivenciar um livro inteiramente, tomando-o como seu. Em um mundo de constante apelo à produtividade e ao consumível, quando tudo solicita a pressa, o não-recolhimento, a distração, vejo na literatura uma clareira de silêncio, dentro de onde o tempo recupera sua densidade, e cada palavra tem sua porção de luz e sombra, sua participação inegociável na vida. Há uma frase de Mário Quintana de que sempre me lembro: “Sonhar é acordar-se para dentro”. A meu ver, essa é a grande tarefa do escritor, tanto hoje como sempre: acordar-nos para dentro. É esse sonho que nos dá a conhecer uma outra lucidez, inconsumível. Como diz uma das Estórias abensonhadas de Mia Couto: “nós temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos. O que acontece, meu filho, é que quase todos estão cegos, deixaram de ver esses outros que nos visitam”.
CM: Não creio que o escritor precise entreter ou ser reconhecível. O pensamento de Zadie é um tanto “regional”, talvez sirva para a realidade em que ela vive, em que tudo se consome e some num zás. Entretenimento é assistir a novela das oito, jogar futebol com os amigos. Não há compromissos no entretenimento, ele é fugidio, passageiro, ninguém lembra do nome do personagem central de um folhetim eletrônico depois que ele acaba. Escritor não se preocupa em entreter, embora os livros possam ser entretenimento. O escritor tem um compromisso transcendente com seu trabalho. Pode até entreter, mas a forma da arte é seu compromisso.
Você acha que o único dever do escritor é expressar sua visão de mundo? Por que? Se não é o único, quais são os deveres do escritor?
MI: O escritor deveria responder às exigências da sua própria linguagem, o que supõe certas aptidões e interesses que escapam ao domínio do literário e têm a ver, sim, com uma maneira muito particular de perceber e pensar o mundo. Mas essa visão de mundo, penso eu, que faz convergir imaginação e memória, está na base da construção de uma poética irredutível à subjetividade do escritor, uma poética que em alguma medida tenha em conta o fato essencial de que escritor e leitor são feitos da mesma substância. Daí porque os labirintos de Borges fazem parte de nós, o ímpeto selvagem de Rimbaud, a guitarra de Lorca contra o fascismo, as mulheres de Neruda e de Vinícius, as viagens de Ulisses, este verso de Walt Whitman: “cada átomo que pertence a mim pertence a você”.
CM: Nunca, nunca, nunca. O escritor não tem nada que ficar expressando sua visão de mundo, porque isso não interessa a ninguém. Visões de mundo são chatas, aborrecidas, panfletárias, demagógicas. Não sei quais são os deveres do escritor, se é que eles existem. O dever do escritor é escrever. De preferência, sem atentar a conceitos como dever. Literatura não serve para nada, já sabemos. Muito menos para encarcerar uma pessoa dentro de preceitos e obrigações.
A vontade de atingir a perfeição num texto, do gênero que for, é algo que persegue o autor? Por que? “O sonho do livro perfeito é, na verdade, o sonho da revelação perfeita de si mesmo”? Somente os escritores considerados gênios conseguem “dizer a verdade de sua própria concepção”?
MI: O livro absoluto talvez seja um dos encantadores emblemas da ficção, como a idéia do infinito e da eternidade. Aqueles célebres versos de William Blake, “Ver o mundo num grão de areia / E o mundo numa flor silvestre”, falam também desse sonho. Penso que a verdade no âmbito da literatura seja da ordem do mistério, da desmedida, enfim, daquilo que não se revela senão ultrapassando o limite do verbal. Gosto muito da definição que Marguerite Duras dá ao livro verdadeiro, referindo-se a ele como um livro “não mentido”, que traz em si erros magníficos, tão difíceis de ser conseguidos quanto preciosos. Creio que a perfeição em um texto abriga essa margem de imprevisibilidade.
CM: Sim, a vontade de atingir a perfeição num texto persegue o autor. Mas não deve ser confundida com a vontade da revelação perfeita de si mesmo. Literartura não é catarse, muito menos psicanálise. Por outro lado, só os gênios verdadeiros conseguem escrever em plenitude aquilo que conceberam num plano ideal.
Para escrever o Fail better, Zadie Smith conversou com outros autores. Um deles disse que seria fascinante saber de escritores vivos o que eles acham que está errado com sua escrita ou como imaginavam seus livros antes de criá-los; ou seja, sugerir um “mapa de desapontamentos”. Como seria esse mapa para você? Mencionando algum texto seu (romance, conto, poema, etc.), quais seriam os aspectos principais?MI: Há um poema no meu terceiro livro, Passagens, que escrevi a partir da leitura do livro de Jó. Meu projeto inicial era de um único poema dividido em vinte e duas partes. Trabalhei nisso durante meses, e então escrevi a série das Lamentações e os Poemas para epitáfios. Cheguei a enviar essa primeira versão para a Nelly Novaes Coelho, que escreveu a apresentação do livro, na época chamado O enredo do Cão. Mas segui trabalhando no poema de Jó, até que o livro foi se desdobrando em um outro. Suprimi as divisões, cortei dezenas de versos, outros incluí em uma nova série, que deu origem à versão final do livro, Passagens. Depois disso enviei a Nelly outro boneco e ela acabou escrevendo uma nova apresentação. Sempre me surpreendeu o poder que os livros têm de ir se metamorfoseando a partir do seu projeto original, às vezes até à revelia do autor. Mas vejo isso menos como um desapontamento do que um encantamento diante do inesperado. Almádena, que publiquei recentemente, também passou por essa confluência com o acaso. Depois do livro pronto, fui ao Sermão de Quarta-Feira de Cinzas, de Antonio Vieira, e encontrei ali a epígrafe de abertura para cada um dos poemas, como se eles tivessem sido premeditados desde o início sob um espírito de circularidade, o que de fato não aconteceu. A inserção das epígrafes, no entanto, abriu um novo caminho de leitura do livro, antes imprevisível para mim, que resgata a atualidade do pensamento de Vieira para além de um contexto religioso.
CM: Não sei como seria esse mapa. Sei que seria grande. Tão grande que aqui, agora, seria difícil compor. Sinceramente, não tenho tempo ou coragem de fazer esse mapa, que se tornaria público. Fazendo um rabisco de mapa, eu acho que escreveria melhor se escrevesse menos, se conseguisse maior concisão e mais humor. Eu falhei em conseguir muitas coisas, mas falhei principalmente numa coisa essencial: conseguir tempo e solidão para escrever. Não posso perder o pouco tempo que tenho em lamúrias, em revisar diante de outras pessoas meus erros, em me preocupar em demonstrações de humildade. Também sou vaidosa, também minha auto-estima é grande a ponto de ter muitos desapontamentos. Admitir meus erros em foro íntimo é essencial, mas praça pública não é terreno para isso. Prefiro que os outros me digam onde errei e onde acertei. Aliás, melhor que me digam onde acertei. Todo o resto deve ser o errado.